The Project Gutenberg EBook of A Mao e A Luva, by Machado de Assis This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you'll have to check the laws of the country where you are located before using this ebook. Title: A Mao e A Luva Author: Machado de Assis Release Date: September 20, 2016 [EBook #53101] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MAO E A LUVA *** Produced by Laura Natal Rodriguez and Marc D'Hooghe at Free Literature (online soon in an extended version, also linking to free sources for education worldwide ... MOOC's, educational materials,...) Images generously made available by the Bodleian Library, Oxford.
Os trinta e tantos annos decorridos do apparecimento desta novella � reimpress�o que ora se faz parece que explicam as differen�as de composi��o e de maneira do autor. Se este n�o lhe daria agora a mesma fei��o, � certo que lh'a deu outr'ora, e, ao cabo, tudo pode servir a definir a mesma pessoa.
N�o existia, ha muito, no mercado. O autor acceitou o conselho de confiar a reimpress�o ao editor dos outros livros seus. N�o lhe alterou nada; apenas emendou erros typographicos, fez correc��es de orthographia, e eliminou cerca de quinze linhas. Vae como saiu em 1874.
M. De A.
�sta novella, sugeita �s urg�ncias da publica��o diaria, saiu das m�os do autor capitulo a capitulo, sendo natural que a narra��o e o estylo padecessem com esse methodo de composi��o, um pouco f�ra dos h�bitos do autor. Se a escrev�ra em outras condi��es, dera-lhe desenvolvimento maior, e algum colorido mais aos caracteres, que ahi ficam esbo�ados. Convem dizer que o desenho de taes caracteres,—o de Guiomar, sobretudo,—foi o meu objecto principal, sen�o exclusivo, servindo-me a ac��o apenas de tela em que lancei os contornos dos perfis. Incompletos embora, ter�o elles saido naturaes e verdadeiros?
Mas talvez estou eu a dar propor��es muito graves a uma cousa de t�o pequeno tomo. O que ahi vae s�o umas poucas paginas que o leitor esgotar� de um trago, se ellas lhe agu�arem a curiosidade ou se lhe sobrar alguma hora que absolutamente n�o possa empregar em outra cousa,—mais bella ou mais util.
Novembro de 1874.
M. De A.
—Mas que pretendes fazer agora?
—Morrer.
—Morrer? Que ideia! Deixa-te disso, Estev�o. N�o se morre por t�o pouco....
—Morre-se. Quem n�o padece estas dores n�o as p�de avaliar. O golpe foi profundo, e o meu cora��o � pusillanime; por mais aborrecivel que pare�a a ideia da morte, peior, muito, peior do que ella, � a de viver. Ah! tu n�o sabes o que isto �?
—Sei: um namoro gorado....
—Luiz!
—.... E se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha j� diminu�do muito o genero humano, e Malthus perderia o latim. Anda, sobe.
Estev�o metteu a m�o nos cabellos com um gesto de augustia; Luiz Alves sacudiu a cabe�a e sorriu. Achavam-se os dous no corredor da casa de Luiz Alves, � rua da Constitui��o,—que ent�o se chamava dos Ciganos;—ent�o, isto �, em 1853, uma bagatella de vinte annos que l� v�o, levando talvez comsigo as illus�es do leitor, e deixando-lhe em troca (usurarios!) uma triste, crua e desconsolada experiencia.
Eram nove horas da noite; Luiz Alves recolhia-se para casa, justamente no occasi�o em que Estev�o o ia procurar; encontraram-se � porta. Alli mesmo lhe confiou Estev�o tudo o que havia, e que o leitor saber� daqui a pouco, caso n�o aborre�a estas historias de amor, velhas como Ad�o, e eternas como o ceu. Os dous amigos demoraram-se ainda algum tempo no corredor, um a insistir com o outro para que subisse, o outro a teimar que queria ir morrer, t�o tenazes ambos, que n�o haveria meio de os vencer, se a Luiz n�o occoresse uma transac��o.
—Pois sim, disse elle, convenho em que deves morrer, mas ha de ser amanh�. Cede da tua parte, e vem passar a noite commigo. Nestas ultimas horas que tens de viver na terra dar-me-has uma li��o de amor, que eu te pagarei com outra de philosophia.
Dizendo isto, Luiz Alves travou do bra�o de Estev�o, que n�o resistiu dessa vez, ou porque a ideia da morte n�o se lhe houvesse entranhado deveras no cerebro, ou porque cedesse ao doloroso gosto de falar da mulher amada, ou, o que � mais provavel, por esses dous motivos juntos. Vamos n�s com elles, escada acima, at� a sala de visitas, onde Luiz foi beijar a m�o de sua m�e.
—Mam�e, disse elle, hade fazer-me o favor de mandar o ch� ao meu quarto; o Estev�o passa a noite commigo.
Estev�o murmurou algumas palavras, a que tentou dar um ar de gracejo, mas que eram funebres como um cypreste. Luiz viu-lhe ent�o, � luz das estearinas, alguma vermelhid�o nos olhos, e adivinhou,—n�o era difficil,—que houvesse chorado. Pobre rapaz! suspirou elle mentalmente. D'alli foram os dous para o quarto, que era uma vasta sala, com tres camas, cadeiras de todos os feitios, duas estantes com livros e uma secretaria,—vindo a ser ao mesmo tempo, alcova e gabinette, de estudo.
O ch� subiu dahi a pouco. Estev�o, a muito rogo do hospede, bebeu dous goles; accendeu um cigarro e entrou a passear ao longo do aposento, em quanto Luiz Alves, preferindo um charuto e um soph�, accendeu o primeiro e estirou-se no segundo, cruzando beatificamente as m�os sobre o ventre e contemplando o bico das chinellas, com aquella placidez de um homem a quem se n�o gorou nenhum namoro. O silencio n�o era completo; ouvia-se o rodar de carros que passavam f�ra; no aposento, por�m, o unico rumor era dos botins de Estev�o na palhinha do ch�o.
Cursavam estes dous mo�os a academia de S. Paulo, estando Luiz Alves, no quarto anno e Estev�o no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos intimos, tanto quanto podiam sel-o dous espiritos differentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estev�o, dotado de extrema sensibilidade, e n�o menor fraqueza de animo, affectuoso e bom, n�o daquella bondade varonil, que � apanagio de uma alma forte, mas dessa outra bondade molle e de cera, que vai � merc� de todas as circumstancias, tinha, al�m de tudo isso, o infortunio de trazer ainda sobre o nariz os oculos c�r de rosa de suas virginaes illus�es. Luiz Alves via bem com os olhos da cara. N�o era mau rapaz, mas tinha o seu gr�o de egoismo, e se n�o era incapaz de affei��es, sabia regel-as, moderal-as, e sobretudo guial-as ao seu proprio interesse. Entre estes dous homens travara-se amizade intima, nascida para um na sympathia, para outro no costume. Eram elles os naturaes confidentes um do outro, com a differen�a que Luiz Alves dava menos do que recebia, e, ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confian�a.
Estev�o referira ao amigo, desde tempos, toda a historia do amor, agora mallogrado, suas esperan�as, desalentos e glorias, e, emfim, o inesperado desfecho. O pobre rapaz, que folheava o capitulo mais delicioso do romance—no sentir delle—caiu de toda a altura das illus�es na mais dura, prosaica e miseravel realidade.
A namorada de Estev�o,—� tempo de dizer alguma cousa della,—era uma mo�a de 17 annos, e, por ora, simples alumna-professora no collegio de uma tia do nosso estudante, � rua dos Invalidos. Estev�o tinha-a visto, pela primeira vez, seis mezes antes, e desde logo sentiu-se preso por ella, �at� � morte�, disse elle ao amigo, referindo-lhe o encontro, o que o fez sorrir de t�o estirado prazo. Qualquer que elle fosse, por�m, o prazo fatal daquelle captiveiro, a verdade � que Estev�o no mesmo ponto em que a viu logo a amou, como se ama pela primeira vez na vida—amor um pouco estouvado e cego, mas sincero e puro. Amava-o ella? Estev�o dizia que sim, e devia crel-o; alguns olhares ternos, meia duzia de apertos de m�o significativos, embora a largos intervallos, davam a entender que o cora��o de Guiomar—chamava-se Guiomar—n�o era surdo � paix�o do academico. Mas, fora disso, nada mais, ou pouco mais.
O pouco mais foi uma flor, n�o colhida do p� em toda a original frescura, mas j� murcha e sem cheiro, e n�o dada, sen�o pedida.
—Faz-me um favor? disse um dia Estev�o apontando para a flor que ella trazia nos cabellos; esta flor est� murcha, e, naturalmente, vai deital-a f�ra ao despentear-se; eu desejava que m'a d�sse.
Guiomar, sorrindo, tirou a flor do cabello, e deu-lh'a; Estev�o recebeu-a com egual contentamento ao que teria se lhe antecipassem o seu quinh�o do ceu. Al�m da flor, e para supprir as cartas, que n�o havia, nada mais obtivera. Estev�o durante aquelles seis compridos mezes, a n�o serem os taes olhares, que afinal s�o olhares, e v�o-se com os olhos donde vieram. Era aquillo amor, capricho, passatempo ou que outra cousa era?
Naquella tarde, a tarde fatal, estando ambos a s�s, o que era raro e difficil, disse-lhe elle que em breve ia voltar para S. Paulo, levando comsigo a imagem della, e pedindo-lhe em cambio, que uma vez ao menos lhe escrevesse. Guiomar franziu a testa e fitou nelle o seu magnifico par de olhos castanhos, com tanta irrita��o e dignidade, que o pobre rapaz ficou attonito e perplexo. Imagina-se a augustia delle diante do silencio que reinou entre ambos por alguns segundos; o que se n�o imagina � a dor que o prostrou,—a dor e o espanto,—quando ella, erguendo-se da cadeira em que estava, lhe respondeu, saindo:
—Esque�a-se disso.
—Pois quanto a mim,—disse Luiz Alves ouvindo pela terceira vez a narra��o de t�o cru desenlace; quanto a mim, obedecia-lhe pontualmente; esquecia-me disso e ia curar-me cima dos compendios; direito romano e philosophia, n�o conhe�o remedio melhor para taes achaques.
Estev�o n�o ouvia as palavras do amigo; estava ent�o assentado na cama, com os cotovellos fincados nas pernas, e a cabe�a mettida nas m�os, parecendo que chorava. A principio chorou em silencio; mas n�o tardou que Luiz Alves o visse deitar-se na cama, estorcer-se convulsivamente, a solu�ar, a abafar quanto podia os gritos que lhe saiam do peito, a puxar os cabellos, a pedir a morte, tudo entremeado com o nome de Guiomar, t�o d'alma tudo aquillo, t�o lastimosamente natural, que emfim o commoveu, e n�o houve remedio se n�o dizer-lhe algumas palavras de conforto. A consola��o veiu a tempo; a dor, chegada ao paroxismo, declinou pouco a pouco, e as lagrimas estancaram, ao menos por algum tempo.
—Sei que tudo isto hade parecer-te rid�culo, disse Estev�o sentando-se na cama; mas que queres tu? Eu vivia na persuas�o de que era amado, e era-o talvez. Por isso mesmo n�o entendo o que se passou hoje. Ou o que eu suppunha ser amor, n�o passava talvez de passatempo ou zombaria...
—Talvez, talvez, interrompeu Luiz Alves, comprehendendo que o melhor meio de o curar do amor era metter-lhe em brios o amor-proprio.
Estev�o ficou alguns instantes pensativo.
—N�o, n�o, � poss�vel, contestou elle. Tu n�o a conheces. � uma grave e nobre creatura, incapaz de conceber um sentimento desses, que seria vulgar ou cruel.
—As mulheres...
—J� pensei se aquillo de hoje n�o seria uma maneira de experimentar-me, de ver at� que ponto eu lhe queria... Escusas de rir-te, Luiz; eu nada affirmo; digo que pode ser. N�o admira que ella fizesse esse calculo,—um bom calculo, nesse caso, todo filho do cora��o...
A imagina��o de Estev�o desceu por este declivio de floridas conjecturas, e Luiz Alves entendeu que era de bom aviso n�o espantar-lhe os cavallos. Ella foi, foi, foi por alli abaixo, redea frouxa e riso nos labios. Boa viagem! exclamou mentalmente o collega voltando a estirar-se no soph�. A viagem n�o foi longa, mas produziu effeito salutar no animo do namorado, ado�ando-lhe as penas, circumstancia que Luiz Alves aproveitou para lhe falar de cem cousas alheias ao cora��o e divertil-o do pensamento que o absorvia. Conseguiu o seu intento durante meia hora, e conseguiu mais, por que fez com que o collega risse, a principio de um riso amargo e dubio, depois de um riso jovial e franco incompat�vel com intuitos tragicos. Mas, ai triste! a dor delle era uma especie de tosse moral, que aplacava e reapparecia, intensa �s vezes, �s vezes mais fraca, mas sempre infallivel. O rapaz acertara de abrir uma pagina de Werther; leu meia duzia de linhas, e o accesso voltou mais forte que nunca.
Luiz Alves acudiu-lhe com as pastilhas da consola��o; o accesso passou; nova palestra, novo riso, novo desespero, e assim se foram escoando as horas da noite, que o relogio da sala de jantar batia secca e regularmente, como a lembrar aos dous amigos que as nossas paix�es n�o acceleram nem moderam o passo do tempo.
A aurora para os dous academicos coincidiu com as badaladas do meio dia, o que n�o admira, pois s� adormeceram quando ella come�ava a apagar as estrellas. Estev�o passou a noite,—a manh�, quero dizer,—muito socegado e livre de sonhos maus. Quando abriu os olhos extranhou o aposento e os objectos que o rodeavam. Logo que os reconheceu, despertou-se-lhe, com a memoria, o cora��o, onde j� n�o havia aquella dor aguda da vespera. Os successos, embora recentes, come�avam a envolver-se na sombra crepuscular do passado.
A natureza tem suas leis imperiosas; e o homem, ser complexo, vive n�o s� do que ama, mas tamb�m (f�r�a � dizel-o) do que come. Sirva isto de excusa ao nosso estudante, que almo�ou nesse dia, como nos anteriores, bastando dizer em seu abono que, se o n�o fez com lagrimas, tamb�m o n�o fez alegre. Mas o certo � que a tempestade serenara; o que havia era uma ressaca, ainda forte, mas que diminuiria com o tempo. Luiz Alves evitou falar-lhe de Guiomar; Estev�o foi o primeiro a recordar-se della.
—D� tempo ao tempo, respondeu Luiz Alves, e ainda te has de rir dos teus planos de hontem. Sobretudo, agradece ao destino o haveres escapado t�o depressa. E queres um conselho?
—Dize.
—O amor � uma carta, mais ou menos longa, escripta em papel velino, c�rte-dourado, muito cheiroso e catita; carta de parabens quando se l�, carta de pezames quando se acabou de ler. Tu que chegaste ao fim, p�e a epistola no fundo da gaveta, e n�o te lembres de ir ver se ella tem um �post-scriptum�...
Estav�o applaudiu a metaphora com um sorriso de bom agouro.
Duas vezes viu elle a formosa Guiomar, antes de seguir para S. Paulo. Da primeira sentiu-se ainda abalado, por que a ferida n�o cicatrisara de todo; da segunda, p�de encaral-a sem perturba��o. Era melhor,—mais romantico pelo menos, que eu o puzesse a caminho da academia, com o desespero no cora��o, lavado em lagrimas, ou a bebel-as em silencio, como lhe pedia a sua dignidade de homem. Mas que lhe hei de eu fazer? Elle foi daqui com os olhos enxutos, distrahindo-se dos tedios da viagem com alguma pilheria de rapaz,—rapaz outra vez, como dantes.
Um mez depois de chegar Estev�o a S. Paulo, achava-se a sua paix�o definitivamente morta e enterrada, cantando elle mesmo um responso, a vozes alternadas, com duas ou tres mo�as da capital,—todas ellas, por passatempo. Claro � que dous annos depois, quando tomou o gr�o de bacharel, nenhuma ideia lhe restava do namoro da rua dos Invalidos. Demais, a bella Guiomar desde muito tempo deixara o collegio e fora morar com a madrinha. J� elle a n�o vira da primeira vez que veiu � corte. Agora voltava graduado em sciencias juridicas e sociaes, como fica dito, mais desejoso de devassar o futuro que de reler o passado.
A corte divertia-se, como sempre se divertiu, mais ou menos, e para os que transpuzeram a linha dos Cincoenta divertia-se mais do que hoje, eterno reparo dos que j� n�o d�o � vida toda a flor dos seus primeiros annos. Para os var�es maduros, nunca a mocidade folga como no tempo delles, o que � natural dizer, porque cada homem v� as cousas com os olhos da sua edade. Os recreios da juventude n�o s�o de certo egualmenle nobres, nem egualmente frivolos, em todos os tempos; mas a culpa ou o merecimento n�o � della,—a pobre juventude,—� sim do tempo que lhe cae em sorte.
A corte divertia-se, apesar dos recentes estragos do cholera—; bailava-se, cantava-se, passeava-se, ia-se ao theatro. O Cassino abria os seus sal�es, como os abria o Club, como os abria o Congresso, todos tres fluminenses no nome e na alma. Eram os tempos homericos do theatro lyrico, a quadra memoravel daquellas lutas e rivalidades renovadas em cada semestre, talvez por um excesso de ardor e enthusiasmo, que o tempo diminuiu, ou transferiu,—Deus lhe perd�e,—a cousas de menor tomo. Quem se n�o lembra,—ou quem n�o ouviu falar das batalhas feridas naquella classica plateia do Campo da Acclama��o, entre a legi�o casalonica e a phalange chartonica, mas sobretudo entre esta e o regimento lagruista? Eram batalhas campaes, com tropas frescas,—e maduras tambem,—apercebidas de flores, de versos, de coroas, e at� de estalinhos. Uma noite a ac��o travou-se entre o campo lagruista e o campo chartonista, com tal violencia, que parecia uma pagina da Illiada. Desta vez, a Venus da situa��o saiu ferida do combate; um estalo rebent�ra no rosto da Charton. O furor, o delirio, a confus�o foram indescriptiveis; o applauso e a pateada deram-se as m�os,—e os p�s. A peleja passou aos jornaes. �Vergonha eterna (dizia um) aos cavalheiros que cuspiram na face de uma dama!�—�Si for mister (replicava outro) daremos os nomes dos aristarchos que no sagu�o do theatro juraram desfeitear Mlle. Lagrua.)�—�Patuleia desenfreada!�—�Fidalguice balofa!�
Os que escaparam daquellas guerras de alecrim e mangerona h�o de sentir hoje, ap�s dezoito annos, que despenderam excessivo enthusiasmo em cousas que pediam repouso de espirito e li��o de gosto.
Estev�o � uma das rel�quias daquella Troya, e foi um dos mais fervorosos lagruistas, antes e depois do gr�o. A causa principal das suas preferencias, era de certo o talento da cantora; mas a que elle costumava dar, nas horas de bom humor, que eram todas as vinte e quatro do dia, tirantes as do somno, essa causa que mais que tudo o ligava aos �arraiaes do bom gosto� dizia elle, era,—imaginem l�,—era o bu�o de Mlle. Lagrua. Talvez n�o fosse elle o unico amador do bu�o; mas outro mais f�rvido duvido que houvesse nesta boa cidade. Um chartonista machiavelico, ali�s escriptor elegante, elevava o tal bu�o � cathegoria de bigode, comprehendendo sagazmente que, se o bu�o era gra�a, o bigode era excrescencia; e elle nem ao labio da Lagrua queria perdoar.
—Oh! aquelle bu�o! exclamava Estev�o nos intervallos de uma opera, aquelle delicioso bu�o hade ser a perdi��o da gente de bem! Quem me dera ir encaracolado por alli acima, at� ficar mais proximo do ceu, quero dizer dos seus olhos, e ser visto por ella, que me n�o descobre na turba innumeravel dos seus adoradores! Querem saber uma cousa? Alli � que ella hade ter a alma, e eu quizera entreter-me com a alma della, e dizer-lhe muita cousinha que tenho c� dentro � espera de um bu�o que as queira ouvir.
Estev�o era mais ou menos o mesmo homem de dous annos antes. Vinha cheirando ainda aos cueiros da Academia, meio estudante e meio doutor, alliando em si, como em edade de transi��o, o estouvamento de um com a dignidade do outro. As mesmas chimeras tinha, e a mesmas simplesa de cora��o; s� n�o as mostr�ra nos versos que imprimiu em jornaes academicos, os quaes eram todos repassados do mais puro byronismo, moda muito do tempo. Nelles confessava o rapaz � cidade e ao mundo a profunda incredulidade do seu espirito, e o seu fastio puramente litterario. A colla��o de gr�o interrompeu, ou talvez acabou, aquella voca��o poetica; o ultimo suspiro desse genero que lhe saiu do peito foram umas sextilhas � sua juventude perdida. Felizmente, que s� a perdeu em verso; na prosa e na realidade era rapaz como poucos.
Posto fizesse boa figura na academia, mais presava do que amava a sciencia do direito. Suas preferencias intellectuaes dividiam-se, ou antes abrangiam a polilica e a litteratura, e ainda assim, a politica s� lhe acenava com o que podia haver litterario nella. Tinha leitura de uma e outra cousa, mas leitura veloz e � flor das paginas. Estev�o n�o comprehender�a nunca este axioma de lord Macaulay—que mais aproveita digerir uma lauda que devorar um volume. N�o digeria nada; e dahi vinha o seu nenhum apego �s sciencias que estudara. Venceu a repugnancia por amor proprio; mas, uma, vez dobrado o cabo das Tormentas disciplinares, deixou a outros o cuidado de aproar � India.
Suas aspira��es pol�ticas deviam naturalmente morrer em germen, n�o s� porque lhe minguava o apoio necessario para as arvorecer e fructificar, mas ainda por que elle n�o tinha em si a for�a indispensavel a todo o homem que p�e a mira acima do estado em que nasceu. Eram aspira��es vagas, intermittentes, vaporosas, umas vis�es legislativas e ministeriaes, que t�o depressa lhe namoravam a imagina��o, como logo se esvaeciam, ao resvalar dos primeiros olhos bonitos, que esses, sim, amava-os elle deveras. Opini�es n�o as tinha; alguns escriptos que publicara durante a quadra academica eram um complexo de doutrinas de toda a casta, que lhe fluctuavam no espirito, sem se fixarem nunca, indo e vindo, al�ando-se ou descendo, conforme a recente leitura ou a actual disposi��o de espirito.
Por agora militava nas fileiras do lagruismo, com ardor, dedica��o e fidelidade de bom apostolo. N�o era abastado para pagar o luxo de uma opini�o lyrica; nascera pobre e n�o tinha parente em boa posi��o. Alguns poucos recursos possuia, provenientes do seu officio de advogado, que exercia com o amigo Luiz Alves.
Uma noite assistira � representa��o de Othello, palmeando at� romper as luvas, acclamando at� cansar-lhe a voz, mas acabando a noite satisfeito dos seus e de si. Terminado o expectaculo, foi elle, segundo costumava, assistir � saida das senhoras, uma prociss�o de rendas, e sedas, e leques, e veus, e diamantes, e olhos de todas as cores e linguagens. Estev�o era pontual nessas occasi�es de espera, e raro deixava de ser o ultimo que sa�a. Tinha agora os olhos pregados em outros olhos, n�o pardos como os delle, mas azues, de um azul-ferrete, infelizmente uns olhos casados, quando sentiu alguem bater-lhe no hombro, e dizer-lhe baixinho estas palavras:
—Larga o pinto, que � das almas.
Estev�o voltou-se.
—Ah! �s tu! disse elle vendo Luiz Alves. Quando chegaste?
—Hoje mesmo, respondeu o collega; venho sequioso de musica. Vassouras n�o tem Lagrua nem Othello...
—Vieste lavar a alma da poeira do caminho, disse Estev�o, que, ainda falando em prosa, cultivava as suas metaphoras poeticas. Fizeste bem; n�o te perdoaria se preferisses a outra, a lambisgoia, que aqui nos querem impingir por grande cousa, e que n�o chega aos calcanhares do bu�o...
Interrompeu-se. Luiz Alves acabava de comprimentar ceremoniosamente alguem que passava; Estev�o volveu a cabe�a para ver quem era. Era uma mo�a, que elle n�o chegou a ver, porque j� descia as escadas; mas t�o elegante e gentil que os olhos lhe fuzilaram de admira��o.
—Algum namoro? perguntou ao amigo.
—N�o; uma visinha.
A desfilada acabou; sairam os dous e foram dalli cear a um hotel, seguindo depois para Botafogo, onde morava Luiz Alves, desde que perdera a m�e, alguns mezes antes.
A casa de Luiz Alves ficava quasi no fim da praia de Botafogo, tendo ao lado direito outra casa, muito maior e de apparencia rica. A noite estava bella, como as mais bellas noites daquelle arrabalde. Havia luar, ceu limpido, infinidade de estrellas e a vaga a bater mollemente na praia, todo o material, em summa, de uma boa composi��o poetica, em vinte estrophes pelo menos, obrigada a rima rica, com alguns exdruxulos rebuscados nos diccionarios. Estev�o poetou, mas poetou em prosa, com um enthusiasmo legitimo e sincero. Luiz Alves, menos propenso �s cousas bellas, preferia a mais util de todas naquella occasi�o, que era ir dormir. N�o o conseguiu sem ouvir ao hospede tudo quanto elle pensava �cerca daquelle �pinto, que era das almas,� aquelles olhos azues, � profundos como o ceu,� exclamava Estev�o.
Afinal dormiram ambos; mas, ou fosse porque os taes olhos o perseguissem, ainda em sonhos, ou porque extranhasse a cama, ou por que o destino assim o resolvera, a verdade � que Estev�o dormiu pouco, e, cousa rara, accordou logo depois de apparecer a arraiada.
A manh� estava fresca e serena; era tudo silencio, mal quebrado pelo bater do mar e pelo chilrear dos passarinhos nas chacaras da visinhan�a. Estev�o, amuado por n�o poder conciliar o somno, resolvera-se a ir ver a manh�, de mais perto. Ergueu-se de manso, lavou-se, vestiu-se, e pediu que lhe levassem caf� ao jardim, para onde foi sobra�ando um livro que acaso topou ao p� da cama.
O jardim ficava nos fundos da casa; era separado da chacara visinha por uma cerca. Relanceando os olhos pela chacara, viu Estev�o que era plantada com esmero e arte, assaz vasta, recortada por muitas ruas curvas e duas grandes ruas rectas. Uma destas come�ava das escadas de pedra da casa e ia at� o fim da chacara; a outra ia da cerca de Luiz Alves at� � extremidade opposta, cortando a primeira no centro. Do lugar em que ficava Estev�o s� a segunda rua podia ser vista de ponta a ponta.
Sentou-se o bacharel em um banco que alli achou, recebeu a chicara de caf�, que o escravo lhe trouxe dahi a pouco, accendeu um charuto e abriu o livro. O livro era uma Pratica Forense. Demos-lhe raz�o ao despeito com que o fechou e atirou ao ch�o, contentando-se com o canto dos passaros e o cheiro das flores, e a sua imagina��o tambem, que valia as flores e os passaros.
Deus sabe at� onde iria ella, com as azas faceis que tinha, se um incidente lh'as n�o colhera e fizera descer � terra. Da casa visinha sa�ra um roup�o,—elle n�o viu mais que um roup�o,—e seguira pela rua que enfrentava com casa, a passo lento e meditativo. Estev�o, que adorava todos os roup�es, fossem ou n�o meditativos, deu as gra�as � Providencia, pela boa fortuna que lhe deparava, e afiou os olhos para contemplar aquella graciosa madrugadora. Graciosa, ainda elle n�o sabia se o era; mas assentou que devia de ser, justamente porque desejava que o fosse.
A deliciosa paisagem ia ter emfim uma alma; o elemento humano vinha coroar a natureza.
Ergueu-se Estev�o, de toda a sua estatura elevada e gentil, para ver melhor,—e ser visto, digamos a verdade toda,—aquella desconhecida visinha, que devia ser por for�a a que Luiz Alves comprimentara no theatro. Acteon christ�o e modesto, n�o sorprehendia Diana no banho, mas ao sair delle; todavia, n�o palpitava menos de commo��o e curiosidade.
O roup�o ia andando.
A primeira cousa que Estev�o p�de descobrir � que a visinha era mo�a. Via-lhe o perfil, em cada aberta que deixavam as arvores, um perfil correcto e puro, como de esculptura antiga. Via-lhe a face c�r de leite, sobre a qual se destacava a c�r escura dos cabellos, n�o penteados de vez, mas frouxamente atados no alto da cabe�a, com aquelle deleixo matinal que faz mais bellas as mulheres bellas. O roup�o,—de musselina branca,—finamente bordado, n�o deixava ver toda a gra�a do talhe, que devia ser e era elegante, dessa elegancia que nasce com a creatura ou se apura com a educa��o, sem nada pedir, ou pedindo pouco � thesoura da costureira. Todo o collo ia coberto at� o pesco�o, onde o roup�o era preso por um pequeno broche de saphira. Um bot�o, do mesmo mineral, fechava em cada pulso as mangas estreitas e lisas, que rematavam em folhos de renda.
Estev�o, da distancia e na posi��o em que se achava, n�o podia ver todas estas minucias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de historias. O que elle viu, al�m do perfil, dos cabellos, e da tez branca, foi a estatura da mo�a, que era alta, talvez um pouco menos do que parecia com o vestido ro�agante que levava. P�de ver-lhe tamb�m um livrinho, aberto nas m�os, sobre o qual pousava os olhos, levantando-os de espa�o a espa�o, quando lhe era mister voltar a folha, e deixando-os cair outra vez para embeber-se na leitura.
Ia assim andando, sem cuidar que a visse alguem, t�o serena e grave, como se atraves�ra um sal�o. Estev�o, que n�o tirava os olhos della, mentalmente pedia ao ceu a fortuna de a ter mais proxima, e anciava por vel-a chegar � rua que lhe ficava diante. Comtudo, era difficil que lhe parecesse mais formosa do que era, vista assim de perfil, a escapar por entre as arvores. O jovem bacharel, par n�o perder o sestro dos primeiros tempos, avocava todas as suas reminiscencias litterarias; a desconhecida foi successivamente comparada a um seraphim de Klopstock, a uma fada de Shakespeare, a tudo quanto na memoria delle havia mais aereo, transparente, ideial.
Em quanto elle trabalhava o espirito nestas compara��es poeticas, n�o descabidas, se quizerem, em tal lugar, e ao p� de t�o graciosa creatura, ella seguia lentamente e chegara � encrusilhada das duas grandes ruas da chacara. Estev�o esperava que voltasse � direita, isto �, que viesse para o lado delle, mas sobretudo receiava que seguisse pela mesma rua adiante e se perdesse no fundo da chacara. A mo�a escolheu um meio termo, voltou � esquerda, dando as costas ao seu curioso admirador e continuando no mesmo passo vagaroso e regular.
A chacara n�o era em demasia grande; e por mais lento que fosse o passo da madrugadora, n�o gastaria ella immenso tempo em percorrer at� o fim aquella por��o da rua em que entr�ra. Mas alli, ao p� daquelle cora��o juvenil e impaciente, cada minuto parecia, n�o direi um seculo,—seria abusar dos direitos do estylo,—mas uma hora, uma hora lhe parecia, com certeza.
A mo�a entretanto, chegando ao fim, parou alguns instantes, pousou a m�o nas costas de um banco rustico que alli havia e enfrentava com outro, collocado na extremidade opposta. A outra m�o descaira-lhe, e os olhos tambem, o que magoou o seu curioso observador. Seriam saudades de alguem? Estev�o sentiu uma cousa, a que chamarei ciume antecipado, mas que na realidade eram invejas da alheia fortuna. A inveja � um sentimento mau; mas nelle, que nascera para amar, e que, al�m disso, tinha em si o contraste do nascimento com o instincto, um ber�o obscuro e umas aspira��es � vida elegante,—nelle a inveja era quasi um sentimento desculpavel.
A mo�a voltou e veiu pela rua adiante. Emfim, disse comsigo Estev�o, vou contemplal-a de mais perto. Ao mesmo tempo, receioso de que, descobrindo alli um extranho, guiasse os passos para casa, Estev�o afastou-se do logar em que fic�ra, resoluto a apparecer, quando ella estivesse proxima � cerca do jardim. A mo�a vinha andando com o livro fechado, e os olhos ora no ch�o, ora nas andorinhas e camachilras que esvoa�avam na chacara. Se trazia saudades, n�o se lhe podiam ler no rosto, que era quieto e pensativo, sim, mas sem a menor sombra de pena ou de tristeza.
Estev�o do logar onde estava podia examinar-lhe as fei��es, sem ser visto por ella; mas foi justamente do que n�o cuidou, desde que lh'as p�de distinguir. Valia a pena, entretanto, contemplar aquelles grandes olhos castanhos, meio velados pelas longas, finas e bastas pestanas, n�o maviosos nem quebrados, como elle os cuidara ver, mas de uma belleza severa, casta e fria. Valia a pena admirar como elles communicavam a todo o rosto e o toda a figura um ar de magestade tranquilla e senhora de si. N�o era ella uma dessas bellezas que, ao mesmo tempo, que subjugam o cora��o, accendem os sentidos; falava � intelligencia primeiro do que ao cora��o, tanto a arte parecia haver collaborado com a natureza naquella creatura, meia estatua e meia mulher.
Tudo isto podia ver e considerar o nosso bacharel. A verdade, por�m, � que a nenhuma destas cousas attendeu. Desde que distingu�ra as fei��es de mo�a, ficou como tomado de assombro, com os olhos parados, a bocca entreaberta, fugindo-lhe a vida e o sangue todo para o cora��o.
A mo�a chegara � cerca; esteve de p� algum tempo, olhou em derredor e por fim sentou-se no banco que alli havia, dando as costas para o jardim de Luiz Alves. Abriu novamente o livro, e continuou a leitura do ponto em que a deixara t�o s� comsigo, t�o embebida no livro que tinha deante, que n�o a despertou o rumor, ali�s sumido, dos passos de Estev�o nas folhas seccas do ch�o. Teria percorrido meia pagina, quando Estev�o, reclinando-se sobre a cerca, e procurando abafar a voz para que s� chegasse aos ouvidos della, proferiu este simples nome:
—Guiomar!
A mo�a soltou um grito de sorpreza e de susto, e voltou-se sobresaltada para o lado donde partira a voz. Ao mesmo tempo levant�ra-se. A impress�o que lhe produzira, e n�o sei se tambem algum ar de colera que lhe notasse no rosto; e al�m de tudo, o remorso de n�o haver suffocado aquelle grito de seu cora��o, fez com que Estev�o, quasi no mesmo instante murmurasse em tom de s�pplica:
—Perdoe-me; foi uma scentelha do passado que estava debaixo da cinza: apagou-se de todo.
Guiomar,—sabemos agora que era este o seu nome,—olhou s�ria e quieta para o seu mal aventurado interruptor, dous longos e mortaes minutos. Estev�o, confuso e vexado, tinha os olhos em terra; o cora��o palpitava-lhe com for�a, como a despedir-se da vida. A situa��o ora em demasia afflictiva e embara�osa para que se podesse prolongar mais. Estev�o ia corteja-la e despedir-se; mas a mo�a, com um sorriso de mais piedade que affecto, murmurou:
—Est� perdoado.
Caminhou para a cerca e estendeu-lhe a m�o, que elle apertou,—apertou n�o � bem dito,—em que elle tocou apenas, o mais ceremoniosamente que podia e devia naquella situa��o.
E depois ficaram a olhar um para o outro, sem se atreverem a dizer nada, nem a sair dalli, a verem ambos o espectro do passado, aquelle t�o amargo passado para um delles. Guiomar foi a primeira que rompeu o silencio, fazendo a Estev�o uma pergunta natural, como n�o podia deixar de ser naquellas circumstancias mas ainda assim, ou por isso mesmo, a mais acerba que elle podia ouvir:
—Ha dous annos que nos n�o vemos, creio eu?
—Ha dous annos, murmurou Estev�o abafando um suspiro.
—J� est� formado, n�o? Lembra-me ter lido o seu nome....
—Estou formado. Sabe que era o desejo maior de minha t�a...
—N�o a vejo ha muito tempo, interrompeu Guiomar; eu sa� do collegio, logo depois que o senhor seguiu para S. Paulo. Sa� a convite da baroneza, minha madrinha, que l� foi buscar-me um dia, allegando que eu j� n�o tinha que aprender, e que me n�o convinha ensinar.
—De certo, assentiu Estev�o.—Minha tia � que n�o deixou nem podia deixar de ensinar; acabou no officio.
—Acabou?
—Morreu.
—Ah!
—Morreu ha cerca de um anno.
—Era uma boa creatura, continuou Guiomar, depois de alguns instantes de silencio, muito carinhosa e muito prendada. Devo-lhe o que aprendi..., Est� admirando esta flor?
Estev�o, apanhado em flagrante delicto de admira��o, n�o da flor mas da m�o que a sustinha,—uma deliciosa m�o, que devia ser por for�a a que se perdeu da Venus de Milo, Estev�o balbuciou:
—Com effeito, � linda!
—Ha muita flor bonita aqui na chacara. A baroneza tem immenso gesto a estas cousas, e o nosso jardineiro � homem que sabe do seu officio.
Aquelle natural acanhamento da primeira occasi�o foi desapparecendo aos poucos, e a conversa veiu a ser, n�o t�o familiar, como outr'ora, mas em todo o caso menos fria do que a principio estivera. Havia, comtudo, uma differen�a entre os dous: elle, sem embargo do desembara�o, sentia-se abalado e commovido; ella, por�m, vencido o sobresalto do principio, mostrava-se tranquilla e fria, sempre polida e grave, risonha �s vezes, mas de um risonho � flor do rosto, que n�o lhe alterava a serenidade e compostura.
O sitio e a hora eram mais proprios de um idylio, que de uma fria e descolorida pratica. Um ceu claro e limpido, um ar puro, o sol a coar por entre as folhas uma luz ainda frouxa e tepida, a vegeta��o em derredor, todo aquelle reviver das cousas parecia estar pedindo uma egual aurora nas almas. Estas � que deviam falar alli a sua lingua dellas, amorosa e candida, em vez da outra, cortez, elegante e rigida, que a nenhum delles desprazia, de certo, mas que era muito menos volontaria nos labios de Estev�o.
Guiomar falava com certa gra�a, um pouco hirta e pausada, sem viveza, nem calor.
Estev�o, que a maior parte do tempo ficara a ouvil-a, observava entre si que as maneiras da mo�a n�o lhe eram desnaturaes, ainda que podiam ser calculadas naquella situa��o. A Guiomar que elle conhecera e amara era o embry�o da Guiomar de hoje, o esbo�o do painel agora perfeito; faltava-lhe outr'ora o colorido, mas j� se lhe viam as linhas do desenho.
A conversa durou cerca de tres quartos de hora, uma migalha de tempo para elle, que desejara muito mais. Mas era preciso acabar; ella foi a primeira a dizer-lh'o.
—O senhor fez-me perder muito tempo. Ha talvez uma hora que estamos aqui a conversar. Era natural, depois de dous annos. Dous annos! Mas o que n�o era natural, continuou ella mudando de tom, era atrever-me a falar com un estranho neste d�shabill� t�o pouco elegante...
—Elegantissimo, pelo contrario.
—O senhor tem sempre um comprimento de reserva: vejo que n�o perdeu o tempo na academia. Vou-me embora. S�o horas da baroneza dar o seu passeio pela chacara.
—Ser� aquella senhora que alli est� no alto da escada? perguntou Estev�o.
—� ella mesma, respondeu Guiomar. Est� � espera que lhe v� dar o bra�o.
E com um gesto friamente fidalgo, estendeu a m�o a Estev�o, dizendo:
—Passe bem, senhor doutor, estimei v�l-o.
Estev�o tocou-lhe levemente na m�o, fina e macia, e inclinou-se respeitoso. A mo�a caminhou para casa. Elle acompanhou-a com os olhos, admirando a gentileza com que ella, desta vez a passo accelerado, resvalava por entre as arvores at� subir as escadas da casa. Viu-a dar o bra�o � madrinha, descerem e seguirem vagarosamente pelo mesmo caminho por onde Guiomar seguira da primeira vez.
Estev�o ainda ficou algum tempo encostado � cerca, na esperan�a de que ella olhasse ou dirigisse os passos para aquelle lado; ella por�m, passou indifferente, como se nem da existencia delle soubera. Estev�o retirou-se dalli cabisbaixo e triste, batido de contr�rios sentimentos, cheio de uma tristeza e de uma alegria que mal se combinavam, e por cima de tudo isso o �co vago e surdo desta interroga��o:
—Entro num drama ou saio de uma comedia?
O passeio da baroneza durou pouco mais de meia hora. O sol come�ava a aquecer, e apesar de ser bastante sombreada a chacara, o calor aconselhava � boa senhora que se recolhesse. Guiomar deu-lhe o bra�o, e ambas, seguindo pelo mesmo caminho, guiaram para casa.
—Parece muito tarde, Guiomar, disse a baroneza ao cabo de alguns segundos.
—E �, madrinha. Demorei-me hoje mais do que costumo, por causa de um encontro que tive aqui na chacara.
—Um encontro?
—Um homem.
—Algum ladr�o? perguntou a madrinha parando.
—N�o, senhora, respondeu Guiomar sorrindo, n�o era ladr�o. A minha mestra de collegio... sabe que morreu?
—Quem disse isso?
—O sobrinho, o tal sugeito que encontrei aqui hoje.
—Voc� est� zombando commigo! Um homem na chacara?
—N�o era bem na chacara, mas no jardim do Dr. Luiz Alves. Estava encostado � cerca; troc�mos algumas palavras.
A baroneza olhou para ella alguns segundos.
—Mas, menina, isso n�o � bonito. Que diriam se os vissem?... Eu n�o diria nada, porque conhe�o o que voc� vale, e sei a discri��o que Deus lhe deu.—Mas as apparencias....Que qualidade de homem � esse sobrinho?
Interrompeu-as uma mulher de quarenta e quatro a quarenta e cinco annos, alta e magra, cabello entre louro e branco, olhos azues, aceiadamente vestida, a Sra. Oswald,—ou mais britannicamente, Mrs. Oswald,—dama de companhia da baroneza, desde alguns annos. Mrs. Oswald conhec�ra a baroneza em 1846; viuva e sem familia, acceitou as prospostas que esta lhe fez. Era mulher intelligente e sagaz, dotada de boa indole e servi�al. Antes da ida de Guiomar para a companhia da madrinha, era Mrs. Oswald a alma da casa; a presen�a de Guiomar, que a baroneza amava extremosamente, alterou um pouco a situa��o.
—S�o nove horas! disse de longe a ingleza; pensei que hoje n�o queriam voltar para casa. O calor est� forte; e a senhora baroneza sabe que n�o � conveniente expor-se aos ardores do sol, sobretudo neste tempo de epidemias.
—Tem raz�o, Mrs. Oswald; mas Guiomar tardou hoje tanto em ir buscar-me, que o passeio come�ou tarde.
—Porque me n�o mandou chamar?
—Estava talvez a dormir, ou entretida com o seu Walter Scott...
—Milton, emendou gravemente a ingleza; esta manh� foi dedicada a Milton. Que immenso poeta, D. Guiomar!
—Tamanho como este calor, observou Guiomar sorrindo. Apertemos o passo e l� dentro a ouviremos com melhor disposi��o.
Foram as tres andando, subiram a escada e entraram na sala de jantar, que era vasta, com seis janellas para a chacara. Dalli seguiram para uma saleta, onde a baroneza sentou-se na sua poltrona, a esperar a hora do almo�o. Guiomar saiu para ir cuidar da toilette; e a baroneza que desde alguns minutos estivera cabisbaixa e pensativa, olhou fixamente para Mrs. Oswald, sem dizer palavra.
Era ella uma senhora de cincoenta annos, refeita, vestida com esse alinho e esmero da velhice, que � um resto da elegancia da mocidade. Os cabellos, c�r de prata fosca, emmolduravam-lhe o rosto sereno, algum tanto arrugado, n�o por desgostos, que os n�o tivera, mas pelos annos. Os olhos luziam de muita vida, e eram a parte mais juvenil do rosto.
Tendo casado cedo, coube-lhe a boa fortuna de ser egualemente feliz desde o dia do noivado at� o da viuvez. A viuvez custara-lhe muito; mas j� l� iam alguns annos, e da crua dor que tivera ficara-lhe agora a consola��o da saudade.
—Chegue-se mais perto; preciso falar-lhe a s�s, disse ella � ingleza, que se achava a alguns passos de distancia.
Mrs. Oswald foi ate a porta espreitar se viria algu�m e voltou a sentar-se ao p� da baroneza. A baroneza estava outra vez pensativa, com as m�os crusadas no rega�o e os olhos no ch�o.
Estiveram as duas alli silenciosas alguns dous ou tres minutos. A baroneza despertou emfim das reflex�es, e voltou-se para a ingleza:
—Mrs. Oswald, disse ella, parece estar escripto que n�o serei completamente feliz. Nenhum sonho me falhou nunca; este, por�m, n�o passar� de sonho, e era o mais bello de minha velhice.
—Mas porque desespera? disse a ingleza. Tenha animo, e tudo se hade arranjar. Pela minha parte, oxal� pudesse contribuir para a completa felicidade desta familia, a quem devo tantos e tamanhos benef�cios.
—Benef�cios!
—E que outra cousa s�o os seus carinhos, a protec��o que me tem dado, a confian�a...
—Est� bom, est� bom, interrompeu affectuasamente a baroneza; falemos de outra cousa.
—Della, n�o �? Diz-me o cora��o que com alguma paciencia tudo se alcan�ar�. Todos os meios se h�o de tentar; e todos elles s�o bons se se trata de fazer a felicidade sua e della. Bem est� o que bem acaba, disse um poeta nosso, homem de juizo. Por em quanto s� vejo um obstaculo: a pouca disposi��o...
—S� esse?
—Que outro mais?
—Talvez outro, disse a baroneza abaixando a voz; p�de ser que n�o, mas t�o infeliz sou neste meu desejo, que hade vir a ser obstaculo, talvez.
—Mas que �?
—Um homem, um mo�o, n�o sei quem, sobrinho da mestra que foi de Guiomar... Ella mesma contou-me tudo ha pouco.
—Tudo o que?
—N�o sei se tudo; mas emfim disse-me que, estando a passear na chacara, vira o tal sobrinho da mestra, junto � cerca do Dr. Luiz Alves, e ficara a conversar com elle. Que ser� isto, Mrs. Oswald? Algum amor que continua ou recome�a agora,—agora, que ella j� n�o � a simples herdeira da pobreza de seus pais, mas a minha filha, a filha do meu cora��o.
A commo��o da baroneza ao proferir estas palavras era tal, que Mrs. Oswald pegou-lhe affectuosamente das m�os e procurou conforta-la com outras palavras de esperan�a e confian�a. Disse-lhe, al�m disso, que o simples conversar com esse homem, que ali�s nenhuma delias conhecia, n�o era raz�o para suppor uma paix�o anterior.
—Emfim, concluiu a ingleza, custa-me crer que ella ame a alguem neste mundo. Por em quanto estou que n�o gosta de ningu�m, e a nossa vantagem n�o � outra sen�o essa. Sua afilhada tem uma alma singular; passa facilmente do enthusiasmo � frieza, e da confian�a ao retrahimento. Ha de vir a amar, mas n�o creio que tenha grandes paix�es, ao menos duradouras. Em todo o caso, posso responder-lhe actualmente pelo seu cora��o, como se tivesse a chave na minha algibeira.
A baroneza abanou a cabe�a.
—Quanto a esse homem, continuou Mrs. Oswald, saberemos quem � elle, e que rela��es de affecto houve no passado.
—Parece-lhe possivel?
—Naturalmente!
A ingleza proferiu esta unica palavra com a seguran�a necessaria para serenar o animo da boa senhora, que ficou algum tempo a olhar pasmada para ella, como quem reflectia.
—Ha occasi�es, disse emfim a baroneza ao cabo de alguns segundos de silencio, ha occasi�es em que eu quasi chego a sentir remorsos do amor que tenho a Guiomar. Ella veiu preencher na minha vida o vacuo deixado por aquella pobre Henriqueta, a filha das minhas entranhas, que a morte levou comsigno, para mal de sua m�e. Se havia de ser infeliz, melhor � que a chore morta, com a esperan�a de a ir encontrar no ceu. Mas n�o lhe quiz mais, nem talvez tanto, como a esta crian�a, que levei � pia, e de quem Deus me fez m�e...
A baroneza calou-se; ouvira passos no corredor.
Guiomar, embora tivesse ido vestir-se e aprimorar-se, com t�o singellos meios o fizera, que n�o desdizia daquelle matinal desalinho em que o leitor a viu no capitulo anterior. O penteado era um capricho seu, expressamente inventado para real�ar a um tempo a abundancia dos cabellos e a senhoril belleza da testa. As pontas bordadas de um collarinho de cambraia dobravam-se faceiramente sobre o azul do vestido de glac�, talhado e ornado com uma simplicidade artistica. Isto, e pouco mais, era toda a moldura do painel,—um dos mais bellos paineis que havia por aquelles tempos em toda a praia de Botafogo.
—Viva a minha rainha de Inglaterra! exclamou Mrs. Oswald quando a viu assomar � porta da saleta.
E Guiomar sorriu com tanta, satisfa��o e g�zo ao ouvir-lhe esta sauda��o familiar, que um observador attento hesitaria em dizer se era aquillo simples vaidade de mo�a, ou se alguma cousa mais.
A baroneza poz os olhos na afilhada, uns olhos amorosos e tristes, em que a mo�a reparou, e que a tornaram s�ria durante alguns rapidos segundos. Mas sorriu depois; e pegando das m�os da madrinha deu-lhe dous beijos no rosto, com tanta ternura e t�o sincera, que a boa senhora sorriu de contentamento.
—N�o precisa falar, disse Guiomar, j� sei que me acha bonita. � o que me diz todos os dias, com risco de me perder, porque se eu acabo vaidosa, adeus, minhas encommendas, ninguem mais poder� commigo.
Guiomar disse isto com tanta gra�a e singeleza, que a madrinha n�o p�de deixar de rir, e a melancolia acabou de todo. A sineta do almo�o chamou-as a outros cuidados, e a n�s tambem, amigo leitor. Em quanto as tres almo�am, relanceemos os olhos ao passado, e vejamos quem era esta Guiomar, t�o gentil, t�o buscada e t�o singular, como dizia Mrs. Oswald.
Guiomar tivera humilde nascimento; era filha de um empregado subalterno n�o sei de que reparti��o do Estado, homem probo, que morreu quando ella contava apenas sete annos, legando � viuva o cuidado de a educar e manter. A viuva era mulher energica e resoluta, enxugou as lagrimas com a manga do modesto vestido, olhou de frente para a situa��o e determinou-se � luta e � victoria.
A madrinha de Guiomar n�o lhe faltou naquelle duro transe, e olhou por ellas, como entendia que era seu dever. A solicitude, por�m, n�o foi t�o constante a principio como veiu a ser depois; outros cuidados de familia lhe chamavam a atten��o.
Guiomar annunciava desde pequena as gra�as que o tempo lhe desabrochou e perfez. Era uma creaturinha galante e delicada, assaz intelligente e viva, um pouco trav�ssa, de certo, mas muito menos do que � usual na infancia. Sua m�e, depois que lhe morrera o marido, n�o tinha outro cuidado na terra, nem outra ambi��o mais, que a de ve-la prendada e feliz. Ella mesma lhe ensinou a ler mal, como ella sabia,—e a coser e bordar, e o pouco mais que possuia de seu officio de mulher. Guiomar n�o tinha difficuldade nenhuma em reter o que a m�e lhe ensinava, e com tal affinco lidava por aprender, que a viuva,—ao menos nessa parte,—sentia-se venturosa. Has-de ser a minha doutora, dizia-lhe muita vez; e esta simples express�o de ternura alegrava a menina e lhe servia de incentivo � applica��o.
A casa em que moravam era naturalmente modesta. Alli correu a infancia,—mas solitaria, o que � um pouco mais grave. A m�e, quando a via embebida nos jogos proprios da edade, infantilmente alegre,—mas de uma alegria que fazia mal a seus olhos de m�e, t�o fundo lhe doia aquelle viver,—a m�e sentia �s vezes pularem-lhe as lagrimas dos olhos fora. A filha n�o as via, porque ella sabia escondel-as; mas advinhava-as atravez da tristeza que lhe ficava no rosto. S� n�o adivinhava o motivo, mas bastava que fossem maguas de sua m�e, para lhe descair tambem a alegria.
Com o tempo, avultou outra causa de tristeza para a pobre viuva, ainda mais dolorosa que a primeira. Na edade apenas de dez annos, tinha Guiomar uns desmaios de espirito, uns dias de concentra��o e mudez, uma seriedade, a principio intermittente e rara, depois frequente e prolongada, que desdiziam da meninice e faziam crer � m�e que eram prenuncios de que Deus a chamava para si. Hoje sabemos que n�o eram. Seria acaso effeito daquella vida solitaria e austera, que j� lhe ia affei�oando a alma e como que apurando as for�as para as pugnas da vida?
A primeira vez que esta gravidade da menina se lhe tornou mais patente foi uma tarde, em que ella estivera a brincar no quintal da casa. O muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da chacara pertencente a uma casa da visinhan�a. A fenda era recente; e Guiomar acostum�ra-se a ir espairecer alli os olhos, j� serios e pensativos. Naquella tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobi�ar talvez as doces fructas amarellas que lhe pendiam dos ramos, viu repentinamente apparecer-lhe deante, a cinco ou seis passos do lugar em que estava, um rancho de mo�as, todas bonitas, que arrastavam por entre as arvores os seus vestidos, e faziam luzir aos ultimos raios do sol poente as joias que as enfeitavam. Ellas passaram alegres, descuidadas, felizes; uma ou outra lhe dispensou talvez algum affago; mas foram-se, e com ellas os olhos da interessante pequena, que alli ficou largo tempo absorta, alheia de si, vendo ainda na memoria o quadro que pass�ra.
A noite veiu, a menina recolheu-se pensativa e melancolica, sem nada explicar � solicita curiosidade da m�e. Que explicaria ella, se mal podia comprehender a impress�o que as cousas lhe deixavam? Mas, como a m�e entristecesse com aquillo, Guiomar domou o proprio espirito e fez-se t�o jovial como nos melhores dias.
Esta era ainda outra fei��o da menina; tinha uma for�a de vontade superior aos seus annos. Com ella, e a viveza intellectual que Deus lhe dera, logrou aprender tudo o que a m�e lhe ensinara, e melhor ainda do que ella o sabia, desde que o tempo lhe permittiu desenvolver os primeiros elementos.
Aos trese annos ficou orph�; este fundo golpe em seu cora��o, foi o primeiro que ella verdadeiramente pode sentir, e o maior que a fortuna lhe desfechou. J� ent�o a madrinha a fizera entrar para um collegio, onde aperfei�oava o que sabia e onde lhe ensinavam muita cousa mais.
Vivia ainda ent�o a filha de baroneza, uma interessante crean�a de trese annos, que era toda a alma e encanto de sua m�e. Guiomar visitava a casa da madrinha; a edade quasi egual das duas meninas, a affei��o que as ligava a belleza e meiguice de Guiomar, a graciosa compostura de seus modos, tudo apertou entre a madrinha e a afilhada os la�os puramente espirituaes que as uniam antes. Guiomar correspondia aos sentimentos daquella segunda m�e; havia talvez em seu affecto, ali�s sincero, um tal encarecimento que podia parecer simula��o. O affecto era espontaneo; o encarecimento � que seria volunt�rio.
Tinha a mo�a dezeseis annos quando passou para o collegio da tia de Estev�o, onde pareceu � baroneza se lhe poderia dar mais apurada educa��o. Guiomar manifest�ra ent�o o desejo de ser professora.
—N�o ha outro recurso, disse ella � baroneza quando lhe confiou esta aspira��o.
—Como assim? perguntou a madrinha.
—N�o ha, repetiu Guiomar. N�o duvido, nem posso negar o amor que a senhora me tem; mas a cada qual cabe uma obriga��o, que se deve cumprir. A minha �... � ganhar o p�o.
Estas ultimas palavras passaram-lhe pelos l�bios como que � for�a. O rubor subiu-lhe �s faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de vergonha.
—Guiomar! exclamou a baroneza.
—Pe�o-lhe uma cousa honrosa para mim, respondeu Guiomar com simplicidade.
A madrinha sorriu e approvou-a com um beijo,—assentimento de boca, a que j� o cora��o n�o respondia, e que o destino devia mudar.
Pouco tempo depois padeceu a baroneza o golpe quasi mortal a que alludiu no capitulo anterior. A filha morreu de repente, e o inopinado do desastre quasi levou a m�e � sepultura.
A affei��o de Guiomar n�o se desmentiu nessa dolorosa situa��o. Ningu�m mostrou sentir mais do que ella a morte de Henriqueta, ningu�m consolou t�o dedicadamente a infeliz que lhe sobrevivia. Eram ainda verdes os seus annos; todavia revellou ella a posse de uma alma egualmente terna e energica, affectuosa e resoluta. Guiomar foi durante alguns dias a verdadeira dona da casa; a catastrophe abatera a propria Mrs. Oswald.
O cora��o da pobre m�e fic�ra t�o vasio, e a vida lhe pareceu t�o agra e deserta sem a filha, que ella morreria talvez de saudade, se n�o fora a presen�a de Guiomar. Nenhuma outra creatura poderia preencher, como esta, o logar de Henriqueta. Guiomar era j� meia filha da baroneza as circumstancias, n�o menos que o cora��o, tinham-n'as destinado uma para a outra. Um dia, em que a afilhada fora visitar a madrinha, esta lhe disse que a iria em breve buscar para sua casa.
—Voc� ser� a filha que eu perdi; elle n�o me amou mais, nem eu j� agora teria outra consola��o.
—Oh! madrinha! exclamou Guiomar beijando-lhe as m�os.
A baroneza estava assentada; Guiomar ajoelhou-se-lhe aos p�s e poz-lhe a cabe�a no rega�o. A boa m�e curvou-se e beijou-lh'a ternamente, com os olhos naquella filha que os successos lhe haviam dado, e o pensamento no ceu, onde devia estar a outra, que Deus lhe dera e levou para si.
Pouco depois estabeleceu-se Guiomar definitivamente em casa da madrinha, onde a alegria reviveu, gradualmente, gra�as � nova moradora, em quem havia um tino e sagacidade raros. Tendo presenciado, durante algum tempo, e n�o breve, o modo de viver entre a madrinha e Henriqueta, Guiomar poz todo o seu esfor�o em reproduzir pelo mesmo teor os habitos de outro tempo, de maneira que a baroneza mal pudesse sentir a ausencia da filha. Nenhum dos cuidados da outra lhe esqueceu, e se em algum ponto os alterou foi para augmentar-lhe novos. Esta inten��o n�o escapou ao espirito da baroneza, e � superfluo dizer que deste modo os vinculos do affecto mais se apertaram entre ambas.
Ao mesmo tempo que ia provando os sentimentos de seu cora��o, revelava a mo�a, n�o menos, a plena harmonia de seus instinctos com a sociedade em que entr�ra. A educa��o, que nos �ltimos tempos recebera, fez muito, mas n�o fez tudo. A natureza incumbira-se de completar a obra,—melhor diremos, come�al-a. Ninguem adivinharia nas maneiras finamente elegantes daquella mo�a, a origem mediana que ella tivera; a borboleta fazia esquecer a chrysalida.
Aquelle conselho de Luiz Alves, na fatal noite de dous annos antes, n�o ha duvida que era judicioso e devera ter ficado no espirito de Estev�o. N�o convinha reler a carta, sob pena de lhe achar um post-scriptum. Estev�o era curioso de epistolas; n�o pode ter-se que n�o abrisse aquella. O post-scriptum l� estava no fim.
Vindo � linguagem natural, Estev�o saiu do jardim de Luiz Alves com o cora��o meio inclinado a amar de novo a mulher que tanto o fizera padecer um dia. Daqui concluir� alguem que elle verdadeiramente n�o deix�ra de a amar P�de ser; havia talvez debaixo da cinza uma faisca, uma s�, e essa bastava a repetir o incendio. Mas fosse de um ou de outro modo, o certo � que Estev�o saiu dalli com o pr�ncipio do amor no cora��o.
Todo aquelle dia foi de alvoro�o e agita��o para elle, que n�o se resignou logo, antes buscou reagir contra a entrada da paix�o nova. A tentativa era sincera; as for�as � que eram escassas. Elle desviava de si a imagem da mo�a; ella, por�m perseguia-o, tenaz, como se fora um remorso, fatal como a voz de seu destino.
Estev�o nada disse a Luiz Alves do encontro e da conversa qui tivera com a mo�a no jardim; e n�o lh'o escondeu por desconfian�a, mas por vergonha. Que lhe diria por�m elle que o n�o tivesse visto e percebido Luiz Alves? Da janella de seu quarto, que dava para o jardim, enfiando os olhos pela fresta das cortinas p�de observa-los durantes aquelles tres quartos de hora de innocente palestra. O espectaculo n�o o divertiu muito; Luiz Alves achou um pouco atrevida a escolha do logar.
A circumstancia de os ver juntos chamou-lhe a atten��o para a coincidencia do nome da visinha com o da antiga namorada do collega; era naturalmente a mesma pessoa.
—Vai contar-me tudo, pensou Luiz Alves quando viu o collega affastar-se da cerca e dirigir os passos para casa.
Estev�o, como disse, foi discreto. Vinha preocupado, muito outro do que entr�ra na vespera, a ler-se-lhe no rosto alguma cousa mais s�ria do que elle proprio costumava ser.
Tinha Estev�o contra si o passado e o futuro. O presente, sim, defendia-o; elle sentia que alguma cousa o distanciava de Guiomar. Mas o passado falava-lhe de todas as doces recorda��es,—as menos amargas,—e a memoria quasi n�o sabe de outras quando relembra o que foi. O futuro acenava-lhe com as suas esperan�as todas, e basta dizer que eram infinitas. Al�m disso, a Guiomar que elle via agora, surgia-lhe no meio de outra atmosphera,—a mesma que o seu espirito almejava respirar; e apparecia-lhe para fugir logo. Sobre tudo isto o obstaculo, aquella porta fechada, que bem podia ser a da citt� dolente, mas que em todo o caso elle quizera ver franqueada �s suas ambi��es.
Os dias correram alternados de confian�a e desanimo, tecidos de ouro e fio negro, um lutar de todas as horas, que acabou como era de prever e devia acabar. O cora��o levou Estev�o atraz de si.
Nenhum meio, dos que tinha � m�o, lhe esqueceu para ver Guiomar. As janellas da casa estavam quasi sempre desertas. Duas ou tres vezes aconteceu vel-a de longe; ao approximar-se-lhe, sumira-se o vulto na sombra do sal�o N�o perdia theatro; mas s� duas vezes teve o gosto de a ver: uma no Lyrico, onde se cantava Somnambula, outra no Gymnasio, onde se representavam os Parisienses, sem que elle ouvisse uma nota da opera, nem uma palavra da comedia. Todo elle, olhos e pensamento, estava no camarote de Guiomar. No Lyrico foi baldada essa comtempla��o; a mo�a n�o deu por elle. No Gymnasio, sim; o theatro era pequeno; comtudo, antes n�o f�ra visto, t�o tenazmente deviou ella os olhos do logar em que elle fic�ra.
Nem por isso deixou Estav�o de ir esperal-a � saida, collocar-se francamente no seu caminho, sollicitar-lhe audazmente os olhos e atten��o. A familia desceu da 2a ordem pela escada do lado de S. Francisco; a estreiteza do logar era excellente. Dava o bra�o � baroneza um mo�o de vinte e cinco annos, figura elegante, ainda que um tanto affectada. Desceram todos tres e ficaram � espera do carro alguns minutos. Na meia sombra que alli havia destacava-se o rosto marmoreo de Guiomar e a gentileza de seu talhe. Seus grandes olhos vagavam pela multid�o, mas n�o fitavam ninguem. Ella possuia, como nenhuma outra, a arte de gozar, sem as ver, as homenagens da admira��o publica.
Irritado com a indifferen�a da mo�a, vagou Estev�o toda aquella noite, a s�s com o seu despeito e o seu amor, tecendo e destecendo mil planos, todos mais absurdos uns que outros. A ta�a enchera de todo; era mister entornal-a no seio de um amigo, de um amigo que houvesse nas suas m�os o unico remedio que elle nessa occasi�o pedia;—a chave daquella porta. Luiz Alves era esse homem.
—Outra vez caido! exclamou elle rindo quando Estev�o lhe contou tudo. Eu j� o havia percebido. Isto de mulheres... Queres ent�o que te leve l�?
—Quero.
Luiz Alves reflectiu alguns intantes.
—E uma viagem, n�o te seria bom fazer uma viagem? J� sei o que me v�s dizer; mas tambem n�o te proponho uma viagem de recreio, � Europa. Olha, arranjo-te, se queres, um logar de juiz municipal...
A proposta era sincera; Estev�o cuidou ver-lhe uma ponta de zombaria e ergueu os hombros com enfado. A proposta, entretanto, merecia ser examinada; era uma carreira, e vinha de um homem que estava a entrar na vida politica, que esperava dahi a algumas semanas o resultado de uma elei��o, com a certeza, ou quasi, de haver triumphado. Era influencia que nascia, e de for�a viria a crescer. Mas para Estev�o, naquella occasi�o, toda a carreira publica, influencia, futuro, leis, tudo estava nos olhos castanhos de Guiomar.
—Eu amo-a, disse elle emfim, isto para mim � tudo. P�de bem ser que tenhas raz�o; talvez me espere algum grande desgosto; mas s�o reflex�es, e eu n�o reflicto agora, eu sinto...
—Em todo o caso, acudiu Luiz Alves, desempenho o meu dever de amigo; digo-te que voc�s n�o nasceram um para outro; que, se ella te n�o amou naquelle tempo, muito menos te amar� hoje, e que emfim...
Luiz Alves estacou.
—Emfim? perguntou Estev�o.
—Emfim pedes-me um sacrificio, concluiu rindo o advogado, por que tamb�m eu j� a namorisquei... N�o � preciso carregares o sobr'olho; foi namoro de visinho, tentativa que durou pouco mais de vinte e quatro horas. Com vergonha o digo, ella n�o me prestou uma migalha de atten��o sequer, e eu voltei aos meus autos.
—Ent�o... gostas della? perguntou Estev�o.
—Acho-a bonita e nada mais. Aquillo foi um lan�ar barro � parede; se acceitasse, casava-me; n�o acceitou...
—J� v�s que somos differentes.
—Queres, ent�o?...
—Um servi�o de amigo.
—Bem, disse por fim Luiz Alves, fa�a-se a tua vontade. A baroneza vai cuidar agora de um processo e mandou-me falar. Eu passo-te a prebenda; entrar�s alli, como advogado, o que de alguma maneira me tira um peso da consci�ncia.
Estev�o, que s� pedia um pretexto, acceitou a offerta com ambas as m�os, e agradeceu-lh'a com t�o expansiva ternura, que fez sorrir o outro.
A promessa cumpriu-se pontualmente. Luiz Alves apresentou Estev�o � baroneza, na seguinte noite, como seu companheiro e amigo, como advogado capaz de zelar os interesses da illustre cliente. A recep��o, foi geralmente boa, salvo por parte de Guiomar, que pareceu aborrecida de o ver naquella casa. Quando Estev�o a saudou, como quem a conhecia de longo tempo, ella mal pode retribuir-lhe o cumprimento; em todo o resto da noite n�o lhe deu palavra. Daquella parte o acolhimento n�o podia ser peior; mas Estev�o sentia-se feliz, desde que vel-a, respirar o mesmo ar, nada mais pedindo por ora, e deixando o resto � fortuna.
De todas as pessoas de casa da baroneza, a primeira que reparou na indifferen�a com que Guiomar trat�ra Estev�o, foi Mrs. Oswald. A sagaz ingleza afivellou a mascara mais impassivel que trouxera das ilhas britannicas e n�o os perdeu de vista. Nem da primeira nem da segunda vez viu nada mais que os olhos delle, que sollicitavam os della, e os della que pareciam surdos. Havia de certo uma paix�o, solitaria e desattendida.
—Sabe que descobri um namorado seu? perguntou ella alguns dias depois a Guiomar.
Guiomar fez um gesto de estranheza.
—Entendamo-nos, observou a ingleza; n�o digo que a senhora o namore tamb�m; digo que � elle quem anda apaixonado. N�o adivinha?
—Talvez.
—O Dr. Estev�o.
Guiomar fez um gesto de desdem.
—Vejo que tinha adivinhado, disse Mrs. Oswald; tamb�m n�o era difficil. Quem tem alguma pratica destas cousas fareja uma paix�o a cem legoas de distancia, por mais que ella busque recatar-se dos olhos estranhos. Os namorados geralmente supp�em que ninguem os v�; � uma lastima. Olhe, da senhora posso eu jurar que n�o est� namorada de pessoa nenhuma.
—Que sabe disso? perguntou Guiomar deitando os olhos para o espelho de seu guarda vestidos. Pois estou, mas de mim mesma.
Mrs. Oswald desatou a rir, de um riso grave e pausado. Ella sabia que a mo�a tinha orgulho de suas gra�as; era bom caminho affagar-lhe o sentimento. Disse-lhe muita cousa bonita, que n�o vem para aqui, e concluiu pondo-lhe as m�os nos hombros, encarando-a fito a fito, a emfim rompendo nestas palavras, meias suspiradas:
—A senhora � a flor desta sua terra. Quem a colher�? Alguem sei eu que a merece...
Guiomar ficou s�ria, e desviou brandamente as m�os da ingleza, murmurando:
—Mrs. Oswald, falemos de outra cousa.
N�o era a primeira vez que Mrs. Oswald alludia a alguma cousa que desagradava a Guiomar, nem a primeira que esta lhe respondia com a sequid�o que e leitor viu no fim do capitulo anterior. A boa ingleza ficou s�ria e calada alguns dous ou tres minutos, a olhar para Guiomar, apparentemente buscando interrogar-lhe o pensamento, mas na realidade sem saber como sair de situa��o. A mo�a rompeu o silencio:
—Est� bom, disse ella sorrindo, n�o vejo razao para que se zangue commigo.
—N�o estou zangada, acudiu promptamente Mrs. Oswald. Zangada porque? P�za-me, de certo, que a natureza me n�o d� raz�o, e que uma allian�a t�o conveniente, para ambos, seja repellida pela senhora; mas se isto � motivo de desgosto, n�o pode sel-o de zanga....
—Desgosto?
—Para mim.... e naturalmente para elle.
Guiomar respondeu com um simples sacudir de hombros, s�cco e r�pido, como quem se lhe n�o dava do mal ou n�o acreditava nelle. Mrs. Oswald n�o atinou qual destas impress�es seria, e concluiu que fossem ambas. A mo�a, entretanto, pareceu arrepender-se daquelle movimento; travou das m�os da ingleza, e com uma voz ainda mais doce e macia que de costume, lhe disse:
—Veja o que � ser crean�a! N�o parece que ainda em cima me zango com a senhora?
—Parece.
—Pois n�o � exacto. Isto s�o caprichos de menina mal educada. Dei para n�o gostar que me adorem... Minto; disso g�sto eu; mas quizera que me adorassem somente, n�o lhe parece?
E Guiomar acompanhou estas palavras com uma risadinha mimosa e uns gestos de crean�a trav�ssa, que destoavam inteiramente da sua gravidade habitual.
—J� sei, gosta de uma adora��o como a do Dr. Estev�o, silenciosa e resignada, uma adora��o..
E Mrs. Oswald, que, como boa protestante que era, tinha a Escriptura na ponta dos dedos, continuou por este modo, accentuando as palavras:
Uma adora��o como a que devia inspirar Jos�, filho de Jacob, que era bello como a senhora: �por elle as mo�as andavam por cima da cerca...�
—Da cerca? perguntou Guiomar tornando-se s�ria.
—Do muro, diz a Escriptura, mas eu digo da cerca porque... nem eu sei porque. N�o core! Olhe que se denuncia.
Guiomar cor�ra deveras; mas era a altivez e o pundonor offendido que lhe falavam no rosto. Olhou fria e longamente para a ingleza, com um desses olhares, que s�o, por assim dizer, um gesto da alma indignada. O que a irritava n�o era a allus�o, que n�o valia muito, era a pessoa que a fazia,—inferior e mercenaria. Mrs. Oswald percebeu isto mesmo; mordeu a ponta do labio, mas transigiu com a mo�a.
—Meu Deus! disse ella. Parece que se zangou por uma bricadeira � toa. Bem sabe que eu n�o podia querer aggraval-a; suppol-o � offender-me a mim,—a mim, que tamb�m lhe tenho affecto de m�e....
A ultima palavra aquietou, o animo de Guiomar; ella tinha cedido ao impulso do seu caracter altivo, mas a raz�o veiu depois, e o cora��o tambem, que n�o era mau. A ingleza, que possu�a longa pratica da vida e sabia ceder a tempo, uniu o gesto � palavra e chamou-a com os bra�os para si. Guiomar deixou-se ir, um pouco de m� vontade, e a conversa teria acabado alli, se Mrs. Oswald n�o lhe dissesse com a mais doce voz que daquella garganta podia sair:
—Conven�a-se de que eu sou importuna e indiscreta por affei��o, e que a felicidade desta familia � toda a ambi��o da minha alma. N�o pode haver inten��o melhor do que esta. Um conselho ultimo,—ultimo se me n�o consentir mais falar-lhe nisto;—eu creio que a senhora sonha talvez de mais. Sonhar� uns amores de romance, quasi �mpossiveis? digo-lhe que faz mal, que � melhor, muito melhor contentar-se com a realidade; se ella n�o � brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir.
Guiomar cravara desta vez os olhos no ch�o, com a express�o vaga e morta de quem os apagou para as cousas externas. As palavras de Mrs. Oswald responder-lhe-hiam acaso a alguma voz intima? A ingleza proseguiu na mesma ordem de ideias, sem que ella a interrompesse ou desse signal de si. Quando ella acabou, Guiomar estremeceu, como se acordasse; levantou a cabe�a, e lenta, e commovida, proferiu esta unica resposta:
—Talvez tenha raz�o, Mrs. Oswald, mas em todo o caso os sonhos s�o t�o bons!
Mrs. Oswald abanou a cabe�a e saiu; Guiomar acompanhou-a com os olhos, a sorrir, satisfeita de si mesma, e a murmurar t�o baixo que mal a ouvia o seu proprio cora��o:
—Sonhos, n�o, realidade pura.
Supponho, que o leitor estar� curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal, de quem as duas trataram no dialogo que precede, se � que j� n�o suspeitou que esse era nem mais nem menos o sobrinho da baroneza,—aquelle mo�o que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Gymnasio.
Era um rapaz de vinte e cinco a vinte e seis annos. Jorge chamava-se elle; n�o era feio, mas a arte estragava um pouco a obra da natureza. O muito mimo empece a planta, disse o poeta, e esta maxima n�o � s� applicavel � poesia, mas tambem ao homem. Jorge tinha um lindo bigode castanho, untado e retesado com excessivo esmero. Os olhos, claros e vivos, seriam mais bellos, se elle n�o os movesse com affecta��o, �s vezes feminina. O mesmo direi dos modos, que seriam faceis e naturaes, se os n�o tornasse t�o alinhados e medidos. As palavras sa�am-lhe lentas e contadas, como a fazer sentir toda a munificencia do autor. N�o as proferia como as demais pessoas; cada syllaba era por assim dizer espremida, sendo facil ver ao cabo de alguns minutos, que elle fazia consistir toda a belleza da elocu��o nesse alongar do vocabulo. As ideias or�avam pelo modo de as exprimir; eram chochas por dentro, mas traziam uma codea de gravidade pesadona, que dava vontade de ir espairecer o ouvido em cousas leves e folgaz�s.
Taes eram os defeitos apparentes de Jorge. Outros havia, e desses, o maior era um peccado mortal, o setimo. O nome que lhe deixara o pae, e a influencia da tia podiam servir-lhe nas m�os para fazer carreira em alguma cousa publica; elle, por�m, preferia vegetar � toa, vivendo do peculio que dos paes herd�ra e das esperan�as que tinha na affei��o de baroneza. N�o se lhe conhecia outra occupa��o.
N�o obstante os defeitos apontados, havia nelle qualidades boas: sabia dedicar-se, era generoso, incapaz de malfazer, e tinha sincero amor � velha parenta. A baroneza, pela sua parte, queria-lhe muito. Guiomar e elle eram as suas duas affei��es principaes, quasi exclusivas.
Tal era a pessoa cujos interesses defendia Mrs. Oswald, por amor da baroneza, e n�o menos de si propria. A baroneza tambem tinha os seus sonhos, como ella mesma disse, e esses eram deixar felizes aquellas duas crian�as. Jorge pela sua parte estava disp�to a estender o collo ao sacrificio; e, bem examinadas as cousas, talvez amasse sinceramente a mo�a. A differen�a entre elle e Estev�o � que o seu amor era t�o medido como os seus gestos, e t�o superficial como as suas outras impress�es.
Do que ahi fica dito, facilmente comprehender� o leitor que, dos dous namorados, s� um percebeu logo o sentimento do outro. A alma de Estev�o andava-lhe nos olhos, enchendo-os de maneira que elle n�o podia ver nada mais al�m de Guiomar.
Ao cabo de duas semanas a situa��o de Estev�o podia d�zer-se menos m�; na opini�o delle era excellente. A baroneza soube quem elle era; Guiomar contara-lhe tudo; mas a ingleza, n�o menos que a observa��o propria, lhe mostrou que nenhum perigo corria Guiomar, e excluido o perigo, restavam as boas qualidades do bacharel, que de todo lhe caiu em gra�a. Mrs. Oswald navegou nas mesmas aguas mansas. O proprio Jorge, naturalmente por que confiava em si, n�o temeu do rival, e pouco tardou que lhe abrisse os cancellos da sua gravidade. Que admira, pois, que a mesma Guiomar afrouxasse um pouco da primeira rigidez?
Aquelle bom rapaz tinha a salutar crendice da esperan�a, em que muita vez se resumem todas as ben��os da vida. Pedia muito, como alma sequiosa que era, mas bem pouco bastava a contental-o. A imagina��o multiplicava os zeros; com um gr�o de areia construiria um mundo. A affabilidade de uns e a cortezia de outros, tanto bastou para que elle se julgasse quasi no termo de suas aspira��es; e posto n�o lhe d�sse Guiomar uma s� das anima��es de outro tempo,—que ali�s t�o frageis eram, ainda assim acreditou elle piamente que o amor nascia, ou renascia, naquelle rebelde cora��o.
Guiomar, no meio das affei��es que a cercavam, sabia manter-se superior �s esperan�as de uns e �s suspeitas de outros. Egualmente cortez, mas egualmente impass�vel para todos, movia os olhos com a serenidade da isen��o, n�o namorados, nem sequer namoradores. Ella teria, se quizesse, a arte de Armida; saberia refrear ou aguilhoar os cora��es, conforme elles fossem impacientes ou tibios; faltava-lhe por�m o gosto,—ou melhor, sobrava-lhe o sentimento do que ella achava que era a sua dignidade pessoal.
Um dia de manh� accordou Estev�o com a resolu��o feita de dar o golpe decisivo. Os cora��es frouxos tem destas energias subitas, e � proprio da pusilanimidade illudir-se a si mesma. Elle confessava que nada havia feito, e que a situa��o exigia alguma cousa mais.
—Nunca as circumstancias foram mais propicias do que hoje, pensava o rapaz; Guiomar trata me com affabilidade de bom agouro. Demais, ha nella espirito elevado; ha de reconhecer que um sentimento discreto e respeitoso, como este meu, vale um pouco mais do que lisonjarias de sala.
A resolu��o estava essentada; restava o meio de a tornar affectiva. Estev�o hesitou largo tempo entre dizer de viva voz o que sentia ou transmittil-o por via do papel. Qualquer dos modos tinha para elle mais perigos que vantagens. Elle receiava ser frio na declara��o escripta ou incompleto na confiss�o oral. Irresoluto e vacillante, ambos os meios adoptou e repelliu, a curtos intervallos; emfim, deferiu a escolha para outra occasi�o.
O acaso suppriu a resolu��o, e o premeditado cedeu o passo ao fortuito.
Uma tarde, havendo algumas pessoas a jantar em casa da baroneza, foram passear � chacara. Estev�o que, como Luiz Alves, era dos convivas, affastou-se gradualmente dos outros grupos, e approximou-se daquella cerca historica onde, ap�s dous annos de ausencia e esquecimento, vira, ja transformada, a formosa Guiomar. Era a primeira vez que elle punha os olhos nesse sitio, depois da conversa, que ahi tivera com ella. A commo��o que sentiu foi naturalmente grande; resurgia-lhe o quadro ante os olhos, a hora, o ceu brilhante, o doce alento da manh�, e por fim a figura da mo�a, que alli appareceu, como a alma do quadro, trazendo-lhe recorda��es, que elle julgava mortas, esperan�as que suppunha impossiveis.
Estev�o curvou a cabe�a ao doce peso daquellas memorias, a alma bebeu, a largos haustos, a vida toda que a imagina��o lhe creava e talvez a noite o tomasse na mesma attitude, se a voz maviosa de Guiomar, lhe n�o dissesse a poucos passos de distancia:
—Sr. doutor, perdeu alguma cousa?
O rapaz volveu rapidamente a cabe�a, e viu a mo�a, que atravessava uma das calhes proximas, a olhar e a sorrir para elle. Estev�o sorriu tambem, e com uma presen�a de espirito assaz rara em namorados, sobretudo em namorados como elle era, promptamente respondeu:
—N�o perdi nada, mas achei uma cousa.
—Vejamos o que foi.
E Guiomar approximou-se, a passo firme e seguro, e Estev�o, sem muito vacillar, alli mesmo forjou uma reflex�o philosophica a respeito de um insecto que casualmente passava por cima de uma folha secca. A reflex�o n�o valia muito, e tinha o defeito de vir um pouco for�ada e de acarreto; a mo�a sorriu, entretanto, e ia continuar o seu caminho, quando elle, colhendo as for�as todas, a fez deter com estas palavras:
—E se eu tivesse achado outra cousa?
—Ainda mais! exclamou ella voltando-se risonha.
Estev�o deu dous passos para Guiomar, desta vez commovido e resoluto. A mo�a fez-se seria e dispoz-se a ouvil-o.
—Se eu tivesse achado neste logar, continuou elle, longos dias de esperan�a e de saudade, um passado que eu julg�ra n�o reviver mais, uma dor occulta e medrosa, vivida na solid�o, nutrida e consolada de minhas pr�prias lagrimas? Se eu tivesse achado aqui a pagina rota de uma historia come�ada e interrompida, n�o por culpa de ninguem na terra, mas da estrella sinistra da minha vida, que um anjo mau accendeu no ceu, e que, talvez, talvez ninguem nunca apagar�?
Estev�o calou-se e ficou a olhar fixamente para Guiomar.
Aquella declara��o repentina e rosto a rosto estava t�o longe do temperamento do rapaz, que ella gastou alguns segundos longos primeiro que voltasse a si do assombro. Elle proprio admirava-se do atrevimento que tivera; e emquanto pendia dos labios da moca, repassava na memoria, ali�s confusamente, o que t�o a frouxo lhe saira do peito naquella hora de aben�oada temeridade.
—Se tivesse achado tudo isso, respondeu Guiomar sorrindo, � natural que preferisse achar outra cousa menos melancolica. Entretanto, parece que nada mais achou do que esta occasi�o de falar, com a viva imagina��o que Deus lhe deu; n'um ou n'outro caso, por�m, posso de certo lastimal-o ou admiral-o, mas n�o me � dado ouvil-o.
E Guiomar ia de novo affastar-se, quando Estev�o, receiando perder a occasi�o que a fortuna lhe offerecia, disse de longe com voz triste e supplice:
—Attenda-me um s� munito!
—N�o um, mas dez—respondeu a mo�a estacando o passo e voltando o rosto para elle—e ser�o provavelmente os ultimos em que falaremos a s�s. Cedo � commisera��o que me inspira o seu estado; e pois que rompeu o longo e expressivo silencio em que se tem conservado at� hoje, concedo-lhe que diga tudo, para me ouvir uma s� palavra.
A mo�a fal�ra n'um tom secco e imperioso, em que mais dominava a impaciencia do que a commisera��o a que vinha de alludir. O cora��o de Estev�o batia-lhe como nunca,—como o cora��o costuma bater nas crises de uma angustia suprema. Todo aquelle castello de vento, laboriosamente construido nos seus dias de illus�o, todo elle se esboroava e desfazia, como vento que era. Estev�o arrependera-se do impulso que o lev�ra a violar ainda uma vez o segredo dos seus sentimentos intimos, a abrir m�o de tantas esperan�as, alimentadas com o melhor do seu sangue juvenil.
Alguns instantes decorreram em que nem um nem outro falou; ambos pareciam medir-se, ella serena e quieta, elle tremulo e gelado.
—Uma s� palavra, repetiu Estev�o, e essa adivinho que ser� de desengano. Embora! Pois que me atrevi a dizer-lhe alguma cousa, for�a � que lhe diga tudo,—feliz, se me restar, ao menos, a maior fortuna a que j� agora posso aspirar,—o seu remorso.
Guiomar ouvira-o tranquillamente; a ultima palavra fel-a estremecer. Sorriu, entretanto, de um sorriso um pouco voluntario e esperou.
A narra��o foi longa, tanto quanto o permittiam a occasi�o, o logar e a pessoa; durou apenas dez minutos. Estev�o nada lhe escondeu, nem o amor que lhe tivera out'rora, nem o que agora lhe renascia, mais violento que o primeiro; disse-lhe as dores que curtira, as esperan�as que afinal lhe enfloravam a alma, tudo quanto emprehend�ra para ler a ventura de a contemplar de perto, de gozar naquelle escasso ponto da terra a maior de todas as bem aventuran�as.
Tal � a transcrip��o, n�o litteral, mas fiel, do que disse Estev�o durante esse dez minutos. As palavras ca�am-lhe tremulas e a voz sa�a-lhe sumida, em parte por que elle forcejava em a abafar, afim de que o n�o ouvissem, em parte porque a commo��o lhe comprimia a garganta. A dor era visivelmente sincera; a eloqu�ncia vinha do cora��o.
Guiomar n�o ouvira tudo com a mesma express�o; a principio um meio riso parecia desabrochar-lhe os labios, mas n�o tardou que pelo rosto abaixo lhe ca�sse um veu mais compassivo e humano. Havia nella impaciencia e anciedade de acabar, de sair dalli; era, sem duvida, o receio de que a aus�ncia se prolongasse de maneira que inspirasse suspeitas. Mas havia tamb�m commisera��o e piedade.
—Nenhuma culpa lhe pode caber do mal que tenho padecido, disse Estev�o concluindo; sobretudo agora, s� eu, s� a minha cabe�a � a causa unica de tudo. Parecia-me ver o contrario do que existia; cheguei a suppor que havia em seu cora��o alguma cousa que n�o era a total indifferen�a; vejo que foi tudo illus�o.
O tom em que elle fal�ra era o mesmo das palavras que ahi ficam, todas humildes e resignadas, sem o menor laivo de queixa ou de reproche. Uma submiss�o assim devia por for�a commover a uma mulher amada. Guiomar falou-lhe sem azedume:
—Era illus�o, disse ella. O sentimento que me acaba de revellar inteiro, ninguem o recebe ou nutre de vontade; a natureza o infunde ou nega. Posso eu ter culpa disso?
—Nenhuma.
—Nem o senhor tambem, e espero que esta mutua justi�a avigore o sentimento de estima devemos ter um para com o outro. Mas estima apenas, n�o p�de haver outra cousa,—da minha parte ao menos. � pouco, de certo...
—N�o � pouco, � cousa differente, interrompeu Estev�o.
—Mas n�o espere nada mais, concluiu Guiomar sem ouvir a interrup��o.
Estev�o abriu a bocca para falar, mas n�o achou palavra que lhe dissesse o que sentia; levou a m�o ao cora��o, que batia fortemente, e ficou a olhar para ella com os olhos seccos e parados, a voz extincta, como se a alma lhe fugira toda. Era claro, depois daquelle desengano, que lhe cumpria n�o voltar alli mais, pelo menos com a assiduidade da esperan�a; e assim era que a unica e amarga satisfa��o de a ver, nem essa j� agora se lhe consentia.
—Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa, seja homem, ven�a-se a si proprio; seu grande defeito � ter ficado com a alma crean�a.
—Talvez, respondeu o mo�o suspirando.
—E adeus. Falamos a s�s, mais do que convinha; n�o sei se outra consentiria nisto. Mas eu n�o s� reconhe�o os seus sentimentos de respeito, como desejo que estas poucas palavras trocadas agora ponham termo a aspira��es impossiveis.
Guiomar estendeu-lhe a m�o, em que elle tocou levemente.
A baroneza appareceu, entretanto, a algumas bra�as de distancia; vinha encostada ao bra�o do sobrinho, que lhe falava, mas a quem ella j� n�o ouvia. Tinha os olhos cravados nos dous interlocutores de ha pouco. A mo�a apenas vira de longe a madrinha, deu affoutamente o bra�o a Estev�o, e seguiram ambos a encontrar-se com ella; o rosto de Guiomar n�o revelava nada; o de Estev�o vinha perturbado e abatido. A baroneza franziu a testa:
—Jorge, disse ella em voz baixa, precisamos conversar.
A baroneza, quando se lhe approximaram os dous interlocutores da cerca, mais receiosa ficou e mais perplexa. Guiomar vinha risonha e at� gracejadora; mas o abatimento de Estev�o era t�o mal disfar�ado, que de duas uma,—ou ella acabava de lhe dar o ultimo desengano,—ou aquillo era apenas um arrufo serio, que o mo�o n�o podia ou n�o queria esconder de olhos extranhos. Isto � o que a baroneza pensou. O que ella concluiu foi que, em todo caso, urgia tentar alguma cousa em favor do maior,—do unico senho da sua velhice.
Jorge n�o percebeu a verdadeira raz�o porque a tia lhe dissera ser necess�rio conversar com ella; imaginou que se trataria de Guiomar e Estev�o,—mas estava longe de suppor todo o alcance da entrevista.
A entrevista n�o pode ser logo nesse dia; as visitas ficaram alli at� tarde, e a noite foi a mais agradavel e distrahida de todas as noites; Guiomar, sobretudo, esteve como nunca, jovial e interessante. A serenidade parecia morar-lhe na alma e reflectir-se-lhe no rosto,—tantas vezes pensativo, mas agora t�o frio e t�o n�.
N�o ser� preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh! sobretudo de boa vontade, porque � mister havel-a, e muita, para vir at� aqui, e seguir at� o fim, uma historia, como esta, em que o autor mais se occupa de desenhar um ou dous caracteres, e de expor alguns sentimentos humanos, que de outra qualquer cousa, por que outra cousa n�o se animaria a fazer;—n�o ser� preciso declarar ao leitor, dizia eu, que toda aquella jovialidade de Guiomar eram punhaes que se lhe cravavam no peito ao nosso Estev�o. Elle n�o podia suppol-a abatida; mas penalisada, ao menos, um pouco respeitosa para com a dor que havia nelle, isto, sim, imaginava que ser�a. Mas nada disso foi, e o pobre rapaz saiu dalli mais cedo do que pens�ra e quizera sair.
Na alcova, se elle podesse vel-a mais tarde na alcova, solitaria e toda comsigo, sentada na poltrona rasa ao lado da cama, com os cabellos desfeitos, os p�sinhos mettidos nas chinellas de setim preto, as m�os no rega�o e os olhos vagando de objecto em objecto, como se reproduzissem f�ra as attitudes interiores do pensamento, alli n�o s� elle a adoraria de joelhos, mas at� poderia suppor que alguma preoccupa��o lhe tirava o somno e que essa era nem mais nem menos elle proprio.
Talvez fosse; em parte ao menos seria elle. Guiomar n�o tinha um cora��o t�o mau, que lhe n�o doessem as maguas de um homem que acertara ou desacertara de a amar. Mas fosse uma, ou fossem muitas as causas daquella preoccupa��o, a verdade � que ella durou muito tempo. Guiomar passou da poltrona � janella, que abriu toda, para contemplar a noite,—o luar que batia nas aguas, o ceu sereno e eterno. Eterno, sim, eterno, leitora minha, que � a mais dasconsoladora li��o que nos poderia dar Deus, no meio das nossas agita��es, lutas, ancias, paix�es insaci�veis, dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e passam comnosco, debaixo daquella azul eternidade, impassivel e muda como a morte.
Pensaria nisto Guiomar? N�o, n�o pensou nisto um minuto sequer; ella era toda da vida e do mundo, desabrochava agora o cora��o, vivia em plena aurora. Que lhe importava,—ou quem lhe chegara a fazer comprehender esta philosophia secca e arida? Ella vivia do presente e do futuro e,—tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambi��es que lh'o enchiam,—tamanho, que bastava a occupar-lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera. Do passado nada queria saber; provavelmente havia-o esquecido.
A madrugada achou-a dormindo; mas os primeiros raios do sol vieram accordal-a, na f�rma do costume, para o matinal passeio com a madrinha. Guiomar sacrificava tudo � dedica��o filial de que ja dera tantas provas. A baroneza, entretanto, estava preoccupada; o passeio foi differente do dos outros dias.
Ao meio-dia metteu-se Guiomar no carro, com Mrs. Oswald, e sairam a uma visita. A baroneza ficou s�; Jorge n�o a deixou ficar s� por muito tempo, porque chegou dahi a pouco.
A baroneza n�o perdeu tempo em circunloquios. Apenas viu o sobrinho interpellou-o directamente:
—Disseram-me, foi Mrs. Oswald quem me disse que tu gostas de Guiomar.
Jorge n�o contava muito com semelhante interroga��o; todavia, n�o era t�o ingenuo que corasse, nem t�o apaixonado que lhe tremesse a voz. Puchou gravemente os punhos da camisa, concertou a gravata, e respondeu singellamente:
—N�o me atrevia a falar-lhe destas cousas...
—Porque n�o?—interrompeu a baroneza; s�o assumptos que se podem tratar entre mim e ti, sem desar para nemhum de n�s. � ent�o verdade o que me disse Mrs. Oswald?
—�.
—Amas deveras, ou...
—Deveras. Recuaria, se visse que uma allian�a entre n�s ficava mal ao lustre de nossa familia; mas, posto que ella seja...
—Guiomar � minha filha, apressou-se a dizer a baroneza.
—Justamente; n�o pode haver melhor titulo.
—Tem ainda outro, continuou a baroneza; � uma alma ang�lica e pura. Henriqueta n�o teve melhor cora��o nem mais amor aos seus. Al�m disso, a natureza deu-lhe um espirito superior, de maneira que a fortuna n�o fez mais do que emendar o equivoco do nascimento. Finalmente � de uma belleza pouco commum...
—Rara, titia, p�de dizer que � de uma belleza rara, acudiu Jorge, e pela primeira vez lhe luziu nos olhos alguma cousa, que n�o era a gravidade de costume.
—J� v�s, proseguiu a baroneza, que ella possue todos os direitos ao amor e � m�o de um homem, como tu.
A baroneza tinha um cora��o ingenuo e lizo, sem desvios nem astucias; comtudo, ha occasi�es em que o mais recto espirito emprega, como por instincto, finuras diplomaticas. A boa senhora tinha tanto a peito aquella uni�o do sobrinho com a afilhada, que n�o confiava s� do amor; procurava interessar-lhe tambem o amor proprio.
Jorge curvou-se com affectada modestia.
—Um homem, como eu,—disse elle—vale pouco por si mesmo; o valor que tenho, e esse � muito, vem do nome de meus pais e do seu, titia, e das santas qualidades que a adornam...
—S� uma, Jorge, s� uma qualidade santissima: � a de amal-os, a ti e a ella. Por isso foi immenso o g�sto que senti quando Mrs. Oswald me disse que gostavas de Guiomar. Acredita que se eu tivesse a fortuna de ver a voc�s unidos e felizes, morreria contente.
—Oh! isso! disse Jorge com ar de duvida.
—Julgas impossivel o casamento?
—Impossivel, n�o; impossivel, nada ha. Mas... mas supponho que a vontade della � indispensavel, t�o indispensavel como duvidosa.
—Duvidosa! Est�s certo disso?
Jorge tinha-se levantado e dera alguns passos, n�o agitado de todo, mas um pouco f�ra da impassibilidade usual. A ideia do casamento apparecia-lhe agora um pouco mais possivel e exequivel, desde que a tia francamente lhe propuzesse allian�a.
—Est�s certo disso? repetiu a baroneza.
—Certo n�o; mas ha toda a raz�o para a duvida. Guiomar sabe que eu g�sto della; e comtudo n�o me d� o menor signal de corresponder aos meus sentimentos.
Jorge expos longamente todas as raz�es que tinha para crer que a vontade de Guiomar n�o correspondia � delle; referiu-lhe, com a maior exac��o e fidelidade, uns tres on quatro episodios que lhe pareciam boa prova daquillo que dizia. A baroneza n�o ouvia tudo com egual atten��o. Quando elle acabou:
—Guiomar ser� muito vexada,—disse ella—e �s vezes, e por isso mesmo, tem essas apparencias frias. Nada impede, por�m, a que venha a amar-te, se � que ja te n�o ama. Ha nella certa altivez natural, que p�de explicar tamb�m essa frieza; parece-me que lhe seria penoso receber o amor de alguem que julgasse levantal-a at� si.
—Isso, talvez...
—Mas esse sentimento, que p�de ser e � honroso, n�o � de certo invencivel.
Todas estas palavras da baroneza lisonjeavam o sobrinho, em cujos labios pairava agora um sorriso de �ntima satisfa��o. De quando em quando n�o ouvia elle nada do que lhe dizia a tia; seus ouvidos voltavam-se para dentro; elle escutava-se a si proprio. O amor de Guiomar come�ava a parecer-lhe possivel; tudo quanto a baroneza lhe dizia era razoavel, com a vantagem de lhe esclarecer as faces obscuras da situa��o. Demais, at� que ponto a baroneza conjecturava ou revelava? Bem podia ser que ella tivesse lido mais fundo no cora��o da mo�a.
Estas reflex�es fel-as Jorge, em quanto a baroneza continuava a falar e a desenvolver a ideia que ultimamente indicara. At� aquelle dia havia elle limitado toda a sua ac��o a alguns olhares, e raras palavras de comprimento; a entrevista com a tia dera-lhe anima��o; pareceu-lhe chegado o ensejo de sair daquella paz armada.
Guiomar chegou d'ahi a pouco e achou-os na �saleta de trabalho,� euphemismo elegante, que queria dizer litteralmente—saleta de conversa��o entremeada de crochet. Mrs. Oswald vinha com ella; ambas riam alegremente de n�o sei que episodio visto no caminho. Jorge erguera-se, pausado mas risonho, apertou a m�o de Guiomar,—apertou-a deveras, mais do que era usual e cortez. Guiomar n�o pareceu afligir-se; perguntou-lhe pela saude, transmittiu � madrinha as lembran�as que lhe mandavam e dispoz-se a sair.
Durante esse tempo, Jorge olhava para ella, enlevado deveras na contempla��o de toda aquella nobre figura, agora mais bella que d'antes, desde que se lhe tornara possivel a allian�a ha muito sonhada. Havia nos olhos de Jorge uns taes ou quaes vestigios lubricos, donde se podia colher que, se elle fosse poeta, e poeta arcadico, editaria pela millionesima vez a compara��o da Venus e dos seus seus infalliveis amorinhos; compara��o detestavel, sobretudo, porque a casta belleza de mo�a, se alguma cousa pag� lhe podia ser chamada, seria antes Diana convertida ao Evangelho.
Jorge saiu dalli singularmente agitado; a conversa da baroneza dera-lhe nervo e resolu��o, e o quadro do casamento come�ou a desenhar-se-lhe no espirito, como o relogio que o menino tem de usar pela primeira vez. At� alli deixara-se elle ir � fei��o das aguas; agora via a necessidade e a possibilidade de abicar � riba feliz do matrimonio.
As duvidas de Estev�o n�o lhe saltearam o espirito; apenas chegou a casa travou da penna, e lan�ou na folha branca e lustrosa de seu papel uma confiss�o elegante e polida, que todavia refundiu duas ou tres vezes, primeiro que a d�sse por prompta. Acabada a redac��o final, transcreveu aquella prosa do cora��o na mais nitida folha que havia em casa,—dobrou o metteu-o na algibeira.
De noite foi � casa da tia. Achou as senhoras � volta de uma meza; Guiomar lia, para a madrinha ouvir, um romance francez, recentemente publicado em Paris e trazido pelo ultimo paquete. Mrs. Oswald lia tambem, mas para si, um grosso volume de Sir Walter Scott, edi��o Constable, de Edimburgo.
Jorge veiu interrompel-as um pouco, mas s� interromper, porque a leitura continuou logo depois, ajudando elle proprio a Guiomar naquella filial tarefa. Veiu o ch�, veiu depois a hora de recolher, e a baroneza deu por findo o ser�o, ainda que o livro estava quasi findo.
—Um capitulo mais, aventurou Jorge com o livro aberto nas m�os.
A baroneza sorriu e voltou os olhos para Guiomar, a cuja conta lan�ou aquella dedica��o do sobrinho; recusou comtudo, por estar a cair de somno.
—Eu � que n�o me deito sem saber o resto, declarou Guiomar; levo o livro commigo.
—Ah! disse Jorge com um gesto de satisfa��o.
E emquanto Guiomar se dispunha a acompanhar a madrinha at� � porta do quarto, e Mrs. Oswald marcava a pagina e fechava o seu livro, Jorge egualmente fechava o outro, mas com tal demora e cuidado, que deu muito que entender � ingleza. Se ella chegou entender, vel-o-hemos depois; o certo � que o livro foi emfim entregue a Guiomar, tendo a pagina marcada, n�o com a fita que l� estava pendente, mas com um pedacinho de papel.
O pedacinho de papel era a carta; apenas uns poucos cent�metros de altura; mas por mais exiguas que tivesse as dimens�es, bem podia ser que levasse alli dentro nada menos que uma tempestade pr�xima.
Meia hora depois, indo a abrir o livro para continuar a leitura, viu Guiomar a cartinha de Jorge. N�o tinha sobrecarta; era um simples papelinho dobrado, rescendendo a amores. O espirito de Guiomar estava t�o longe d'aquillo que n�o suspeitou nada e distrahidamente o abriu. A primeira palavra escripta era o seu nome; a ultima era o de Jorge.
O primeiro gesto de Guiomar foi de colera. Se elle pudesse espreita-la pelo buraco da fechadura, e ver-lhe a express�o do rosto, � mui provavel que se lhe convertesse em aborrecimento todo o amor que at� agora nutria. Mas elle n�o estava alli, a mo�a podia traduzir fielmente no rosto os movimentos do cora��o.
—Mais um, pensou ella; este por�m...
E desta vez o gesto n�o foi de colera, foi de alguma cousa mais, metade fastio, metade lastima, mescla difficil e rara.
A mo�a ficou algum tempo quieta, a olhar para o papel, sem o querer ler, como a hesitar entre queimal-o ou restitui-lo intacto a seu autor. Mas a curiosidade venceu por fim; Guiomar abriu o papel e leu estas linhas:
�Guiomar! Perdoe-me se lhe chamo assim; as conven��es sociaes condemnam-me de certo, mas o cora��o approva, que digo? elle mesmo escreve estas letras. N�o � a minha penna, n�o s�o os meus labios que lhe falam deste modo, s�o todas as for�as vivas da minha existencia, que em alta voz proclamam o immenso e profundo amor que lhe tenho.
�Antes de o ler neste papel, j� a senhora o hade ter visto, pelo menos adivinhado nos meus olhos, na doce embriaguez que em mim produz a presen�a dos seus. Persuado-me de que todo o meu esfor�o em recalcar este affecto � v�o; por mais que eu sinceramente deseje esquecel-a, n�o o alcan�arei nunca; n�o alcan�arei mais que uma affli��o nova. O remorso de o tentar vir� coroar os demais infortunios.
�Porque raz�o rompo hoje o silencio em que me tenho conservado, medroso e respeitoso silencio que, se me n�o abre a caminho da gloria, ao menos conserva-me a palma da esperan�a? Nem eu mesmo saberia responder-lhe; falo, porque uma for�a interior me manda falar, como trasborda o rio, como se derrama a luz; falo porque morreria talvez se me calasse, do mesmo modo que morrerei de desespero, se al�m do perd�o que lhe pe�o, ma n�o der uma esperan�a mais segura do que esta, que me faz viver e consumir.—Jorge.�
Guiomar leu esta carta duas vezes, uma leitura de curiosidade, outra de analyse e reflex�o, e ao cabo da segunda achava-se t�o fria como antes da primeira. Olhou algum tempo para o papel e mentalmente para o homem que o havia escripto; emfim, poz a carta de lado, abriu o livro e continuou o romance.
Mas o espirito, que n�o ficara t�o indifferente como o cora��o, entrou a fugir-lhe do romance para a vida com tal tenacidade que n�o houve remedio sen�o irem os olhos atraz delle, e a mo�a de novo mergulhou nas reflex�es que lhe suggeria o caso da paix�o de Jorge.
Paix�o n�o era,—n�o o seria ao menos no sentido inteiro do vocabulo; mas alguma cousa menos, ou parecida com ella, e ainda assim verdadeira, via bem Guiomar que o poderia ser. At� que ponto chegaria entretanto, o seu adorador, se ella o desattendesse logo; e, dado o amor que a baroneza tinha ao sobrinho, at� que ponto a recusa iria magoal-a? Guiomar varreu do espirito os receios que lhe nasciam de taes interroga��es; mas sentiu-os primeiro, pezou-os antes de os arredar de si, o que revelar� ao leitor em que propor��o estavam nella combinados o sentimento e a raz�o, as tendencias da alma e os calculos da vida.
Excluido o receio, voltou-lhe o riso, aquelle riso interior, que � o mais involuntario e cruel, e tambem o menos arriscado que a gente p�de dar �s fatuidades humanas. N�o podia ser t�o despresivel assim o amor de um homem, cuja ridiculez compensavam algumas qualidades boas, e que emfim era tambem distincto, ainda que a sua distinc��o primasse antes por um estylo rendilhado e complicado, que n�o � o melhor. Guiomar via tudo isso, e por outro lado, n�o podia obstar que elle a amasse; nem por isso achava menos temeraria aquella confiss�o.
A mo�a reflectia tambem na posi��o especial que tinha naquella casa o sobrinho da baroneza; via-se obrigada � presen�a delle, e talvez � luta, porque o pretendente n�o recuaria do primeiro golpe. N�o havia taes receios da parte de Estev�o; ella reconhecia que a paix�o deste era ardente e profunda, e por isso mais capaz de desatinos; mas comparava as indoles dos dous homens, e se ambos lhe pareciam de fraca compleix�o moral, nem por isso desconhecia que ao bacharel faltava certa presump��o que distinguia o outro, e com a qual teria talvez de pelejar.
Quando ella fez esta compara��o entre os dous homens, ficaram-lhe os olhos um pouco mais molles e quebrados, obra de tres minutos apenas, mas tres minutos que, se Estev�o soubera delles, trocaria por elles o resto de toda a vida. E comtudo, n�o era amor nem saudade; alguma sympathia, sim, ainda que leve e sem consequencia; mas sobretudo era pena de o n�o poder amar,—ou ainda melhor—era lastima de que tal cora��o n�o fora casado a outro espirito.
Guiomar reflectiu ainda muito e muito, e n�o reflectiu s�, devaneou tamb�m, soltando o panno todo a essa veleira escuna da imagina��o, em que todos navegamos alguma vez na vida, quando nos can�a a terra firme e dura, e chama-nos o mar vasto e sem praias. A imagina��o della por�m n�o era doentia, nem romantica, nem piegas, nem lhe dava para ir colher flores em regi�es selvaticas ou adormecer � beira de lagos azues. Nada disso era nem fazia; e por mais longe que velejasse levaria entranhadas na alma as lembran�as da terra.
Volveu emfim e olhos cairam-lhe na carta. A realidade presente n�o se lhe podia mostrar de peor modo. Guiomar ergueu-se irritada, lan�ou m�o do papel e machucou-o febrilmente; ia talvez rasgal-o, quando ouviu bater de manso � porta.
—Quem �? perguntou.
—Sou eu, respondeu a voz de Mrs. Oswald.
A mo�a foi abrir a porta; a ingleza entrou, trajada de dormir, e um vivo espanto nos olhos, que pareceu tirar-lhe a voz durante alguns segundos. Guiomar assustada perguntou:
—Que �? aconteceu alguma cousa a minha madrinha?
—Longe v� o agouro! exclamou a ingleza. N�o lhe aconteceu nada; a senhora baroneza dorme naturalmente a somno solto. Venho porque do meu quarto pareceu-me ouvir rumor de passos aqui, e depois vi luz. Pensei que tivesse algum incommodo. Mas, pelo que vejo, continuou a ingleza deitando os olhos para a mezinha em que pousava o livro aberto,—pelo que vejo ainda n�o acabou de ler o seu romance...
—N�o li ainda uma linha, depois que me recolhi, respondeu Guiomar cravando os olhos no rosto da ingleza, como tomada de um pensamento subito.
—Deveras!
—Li outra cousa, continuou a mo�a; li este papel.
Mrs. Oswald inclinou-se para ler tamb�m o papel, que ali�s adivinhou qual fosse; Guiomar atirou-o sobre a mesa.
—N�o precisa, disse ella; � uma declara��o amorosa.
—De quem? perguntou a ingleza abrindo uns olhos espantados e obedientes.
—Leia o nome.
Mrs. Oswald leu a assignatura da carta, que a mo�a do novo lhe apresentava.
—Naturalmente, continuou Guiomar, ha nisto obra sua...
—Minha! interrompeu a outra um pouco mais rispidamente do que costumava falar.
Guiomar tinha ido sentar-se; o p�sinho impaciente batia no tapete, com um movimento rapido e regular; cruz�ra os bra�os sobre o peito, fitando a ingleza com uns olhos em que se podia ler a viva exacerba��o do espirito. Seguiu-se curto silencio; Mrs. Oswald puxou outra cadeira e sentou-se perto da mo�a.
—Por que ha de ser injusta commigo? disse ella dando � voz um tom mellifluo e supplicante; porque n�o ha de ver as cousas, como ellas naturalmente s�o? O que ha nisto � uma coincidencia curiosa, mas nada mais. Se lhe falei em semelhante cousa algumas vezes, foi porque eu mesma percebi o amor que lhe tem o Sr. Jorge; � cousa que todos veem. Imaginei que o casamento, neste caso, seria agradavel � Sra. baroneza a quem sou grata. Posso ter feito mal...
—Muito mal, interrompeu Guiomar; s�o cousas de familia em que a senhora nada tem que ver.
Guiomar levantou-se outra vez, deu alguns, passos, e voltou a sentar-se. Com o movimento desprenderam-se-lhe os cabellos e cairam-lhe sobre os hombros. Mrs. Oswald approximou-se della para os colher e atar, mas a mo�a seccamente a repelliu:
—Deixe, deixe...
E ella mesma os recompoz com as suas m�osinhas finas, e ficou depois a olhar para o ch�o, a morder o labio, a respirar fortemente, como se contivera a palavra que forcejava por sair impetuosa e colerica. Mrs. Oswald n�o disse nada durante alguns minutos; esperou que passasse o periodo agudo da irrita��o. Quando lhe pareceu que ella afrouxava, rompeu emfim o silencio.
—Fiz mal, fiz n�o ha duvida, mas a inten��o n�o podia ser melhor. Talvez n�o me creia; paciencia! O que lhe pe�o,—nem lhe pe�o,—o que eu acredito piamente � que n�o me hade attribuir algum interesse de ordem...
Mrs. Oswald fez uma pausa para dar aberta ao protesto de Guiomar, mas Guiomar n�o protestou, quero dizer n�o protestou de viva voz; fez apenas um gesto negativo, bastante a satisfazer os melindres da ingleza. A mo�a foi sincera; n�o attribuia realmente a nenhum interesse vil,—pecuniario,—a ac��o de Mrs. Oswald. Nem por isso a absolvia,—n�o s� porque ella viria concorrer talvez para uma crise penosa, mas tamb�m,—bom � notal-o outra vez,—porque a condi��o da ingleza naquella casa era relativamente inferior.
A ingleza continuou a falar em defeza propria, a justificar miudamente os bons sentimentos do cora��o, e a prometter que deixava por m�o todo aquelle negocio, a seu juizo, o melhor que a mo�a podia fazer.
—A experiencia da vida, concluiu ella, devia ter-me convencido de que o melhor de todos os sentimentos � um egoismo quieto e calado.
Em quanto ella falava assim, Guiomar parecia volver a tranquilidade habitual. A mudan�a foi,—n�o s�bita,—mas um pouco mais rapida do que devera ser, tratando-se de um espirito, como o della, em que as impress�es n�o eram superficiaes nem momentaneas. Havia at� uns toques de affabilidade no rosto e na voz, quando ella come�ou, a falar, o que revelaria talvez ser aquella mudan�a muito voluntaria e meditada.
—Est� bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou. Sinto que as cousas chegassem a este ponto, e que elle se lembrasse de escrever semelhante carta, confessando uma paix�o que acredito sincera, mas a que o meu cora��o n�o p�de corresponder. Amores n�o se encommendam como vestidos: sobretudo n�o se fingem, ou n�o se devem fingir nunca.
—Oh! decerto!
—Eu gosto delle, como parente que � de minha madrinha, e tamb�m por que ella lhe tem affei��o de m�e, como a mim; somos uma especie de irm�os, nada mais.
—Tem muita raz�o, assentiu Mrs. Oswald. A senhora pensa e fala como um doutor. Que se lhe ha de fazer? Quem n�o ama n�o ama. Delle � que eu tenho pena!
—Gosta muito de mim, n�o? perguntou Guiomar fitando os olhos na ingleza.
—Oh! parece que sim! A senhora deve sabel-o tanto como eu; eu sei o que tenho visto, e creio que � muito.
—Eu nunca vi nada, respondeu seccamente Guiomar.
A resposta de Mrs. Oswald foi um sorriso de incredulidade, que a outra n�o viu ou n�o quiz ver. Houve uma pausa; Guiomar continuou nestes termos:
—Mas seja como for, a minha resposta � negativa. Estou que elle n�o me far� a injuria de querer casar commigo, sem que eu o ame...
Guiomar parou, como a esperar, que a outra lhe dissesse alguma cousa. Desta vez coube a Mrs. Oswald n�o responder nada, nem com a voz nem com o gesto. A mo�a inclinou o corpo poz os bra�os sobre os joelhos, com os dedos cruzados, e entre um riso amavel e um olhar affectuoso, continuou:
—A senhora podia, se acaso elle alguma vez lhe falou nisso ou vier a falar-lhe, podia dissuadi-lo de taes ideias, dizendo-lhe simplesmente, a verdade e dando-lhe conselhos, os conselhos que a senhora hade saber dar, e que elle aceitar� de certo, porque � um bom cora��o, um caracter estimavel...
—Oh! excellente! um mo�o excellente!
E as duas ficaram a olhar uma para a outra, Guiomar a sorrir, mas de um sorriso, que era uma contrac��o voluntaria dos musculos, e a ingleza a fazer um rosto de piedade, e adora��o, e pena, e muita cousa junta, que a mo�a s� come�ou a comprehender, quando ella rompeu o silencio deste modo:
—Estou a duvidar se devo dizer-lhe o resto.
—O resto? perguntou Guiomar admirada. Pois que ha mais?
A ingleza approximou a cadeira. Guiomar endireitou o busto e esperou anciosa a revela��o,—se revela��o era,—que lhe ia fazer Mrs. Oswald. Esta n�o falou logo; era razoavel hesitar um pouco, lutar comsigo mesma, antes de dizer alguma cousa. Emfim, com um movimento de quem ajunta as for�as todas e as emprega em cousa superior � coragem usual:
—D. Guiomar, disse ella, pegando-lhe nas m�os, ninguem p�de exigir que se case sem amar o noivo; seria na verdade uma affronta. Mas o que lhe digo � que o amor que n�o existe por ora, p�de vir mais tarde, e se vier, e se viesse seria uma grande fortuna...
—Mas acabe, acabe, interrompeu a mo�a com impaciencia.
—Seria uma grande fortuna para a senhora, para elle, ouso dizer que para mim, que os estimo e adoro, mas sobretudo para a Sra. baroneza.
—Como assim? disse Guiomar.
—Oh! para elle seria a maior fortuna da vida, porque � hoje o seu mais entranhado e vivo desejo, o seu desejo verdadeiramente da alma. A senhora...
—Est� certa disso?
—Certissima.
—N�o creio, n�o vejo nada que...
—Creia, deve crer. Se me promette nada dizer desta nossa conversa, nem fazer suspeitar por nenhum modo o que lhe estou contando...
—Fale.
—Pois bem,—continuou Mrs. Oswald abaixando a voz, como se alguem podesse ouvil-a na solid�o daquella alcova, e no silencio, profundo daquella casa, que toda dormia,—pois bem, eu lhe direi que por ella mesma tive noticia deste seu desejo. Quando eu percebi a paix�o do Sr. Jorge, falei nisso a sua madrinha, gracejando na intimidade que ella me permitte, e a senhora baroneza em vez de sorrir, como eu esperava que fizesse, ficou algum tempo pensativa e s�ria, at� que rompeu nestas palavras: �Oh! se Guiomar gostasse delle e viessem a casar-se, eu seria completamente feliz. N�o tenho hoje outra ambi��o na terra. Ha de ser a minha campanha.�
—Minha madrinha disse isso? perguntou Guiomar.
—Tal qual. A resposta que lhe dei foi que o casamento n�o era impossivel, e que nada mais natural do que virem a amar-se duas pessoas a principio indifferentes. O amor nasce muita vez do costume.
Guiomar j� mal ouvia o que lhe estava dizendo a ingleza; se ainda olhava para ella, era com os olhos indecisos e empanados, de quem vae toda absorvida em pensamentos intimos.
—Foi desde esse dia, continuou Mrs. Oswald, que me pareceu conveniente falar-lhe algumas vezes nisso, sondar-lhe o cora��o, ver se elle favorecia o sonho de sua madrinha, tornando feliz toda esta casa... Fiz mal, convenho; mas a inten��o era a mais respeitavel e santa deste mundo.
—De certo, murmurou Guiomar.
Mrs. Oswald pegou-lhe n'uma das m�os e beijou-a affectuosamente. Guiomar n�o a repelliu nem sequer pareceu dar-se-lhe da ternura da ingleza. As duas olharam-se uns breves minutos, sem dizer nada, como a lerem na alma uma da outra.
Guiomar n�o tinha a experiencia nem a edade da ingleza, que podia ser sua m�e; mas a experiencia e a edade eram substituidas, como sabe o leitor, por um grande tino e sagacidade naturaes. Ha creaturas que chegam aos cincoenta annos sem nunca passar dos quinze, t�o simplices, t�o cegas, t�o verdes as comp�e a natureza; para essas o crepusculo � o prolongamento da aurora. Outras n�o; amadurecem na saz�o das flores; vem ao mundo com a ruga da reflex�o no espirito,—embora, sem prejuiso do sentimento, que nellas vive e influe, mas n�o domina. Nestas o cora��o nasce enfreiado; trota largo, vae a passo ou galopa, como cora��o que �, mas n�o dispara nunca, n�o se perde nem perde o cavalleiro.
O que a afilhada da baroneza buscava ler no rosto de Mrs. Oswald era se effectivamente a madrinha nutria aquelle desejo, ou se tal revela��o n�o era mais do que um embuste. O leitor sabe que era verdadeira; mas admittir�, sem duvida, que a mo�a s� depois de muito interrogar e examinar lhe d�sse f�. Creu emfim; creu, porque era verosimil, creu porque a ingleza n�o se arriscaria a qualquer indiscri��o da parle della, que de todo a desmascararia.
—Parece-me, disse Mrs. Oswald, que n�o fiz mal em lhe dizer tudo o que sabia. Conselhos n�o lhe dou nenhuns; o melhor delles n�o vale a voz do proprio cora��o. O seu � puro e recto; consulte-o de boa vontade, e ver� se ha nelle indifferenca, ou se alguma faisca...
—Eu sei! interrompeu Guiomar. N�o me lembrou consultal-o nunca.
—Faz mal, elle � o relogio da vida. Quem o n�o consulta, anda naturalmente f�ra do tempo. Mas que vejo! continuou Mrs. Oswald deitando os olhos para o reloginho de Guiomar. Naquelle outro relogio faltam dez minutos para uma hora! Uma hora! Que diria a Sra. baroneza se soubesse que ainda estamos aqui de conversa! Retiro-me; Deus lhe d� um somno socegado, e sobretudo a fa�a feliz, como merece. N�o lhe recommendo juizo, porque o tem de sobra. Adeus, at� amanh�.
E Mrs. Oswald sahiu p� ante p� em direc��o ao seu quarto.
Guiomar ficou s�, alli sentada ao p� da cama, a ouvir o passo surdo, e cautelloso da ingleza. Quando o som morreu de todo, e o silencio da noite volveu ao que era, profundo e sepulchral, a mo�a deixou cair os bra�os na cama, e a cabe�a nas m�os, e um suspiro desentranhou-se-lhe do peito, longo, ruidoso, magoado,—o primeiro que o leitor lhe ouve desde que a conhece—e emfim estas palavras arrancadas da alma, t�o doloridas,—ia dizer t�o lacrimosas,—vinham ellas:
—Oh meus sonhos! meus sonhos!
N�o chorou; a alma della era das que n�o tem lagrimas, em quanto lhe restam for�as. Os olhos estavam seccos e firmes quando ella os ergueu das m�os; o resto tinha vestigios do abalo, mas n�o havia nelle desanimo, menos ainda desespero.
Durante uma inteira e comprida semana, deixou Estev�o de apparecer no escriptorio onde trabalhava com Luiz Alves; n�o appareceu tambem em Botafogo. Ninguem o viu em todo esse tempo nos logares onde elle era mais ou menos assiduo. Foram seis dias, n�o digo de reclus�o absoluta, mas de completa solid�o, porque ainda nas poucas vezes que saiu, fel-o sempre a horas ou em direc��es que a ninguem via, e de ninguem era visto.
Mas n�o f�ra essa crua e malfadada crise, e � quasi certo que elle metteria uma lan�a na Africa daquelles dias, que era um ponto muito serio e grave, a quest�o magna da rua do Ouvidor e da casa do Jos� Thomaz, a ponderosa, crespa e complicada quest�o de saber se a Stephanoni estrearia no Ernani. Esta quest�o, de que o leitor se ri hoje, como se h�o de rir os seus sobrinhos de outras analogas puerilidades, esta preten��o a que se oppunha a Lagrua, allegando que o Ernani era seu, preten��o que fazia gemer as almas e os prelos daquelle tempo, era cousa muito propria a espertar os brios do nosso Estev�o, t�o marechal nas cousas minimas, como recruta nas cousas maximas.
Infelizmente elle n�o apparecia, n�o sabia sequer do conflicto e do debate, occupado como estava em travar o aspero e sangrento duelo do homem contra si mesmo, quando lhe falta o apoio, ou a consola��o dos outros homens. Todo elle era Guiomar; Guiomar era o primeiro e o ultimo pensamento de cada dia. A sombra da mo�a vivia ao p� delle e dentro delle, no livro em que lia, na rua solitaria onde acaso transitava, nos sonhos da noite, nas estrellas do ceu, nas poucas flores de seu inculto jardim.
Um leitor perspicaz, como eu supponho que hade ser o leitor deste livro, dispensa que eu lhe conte os muitos planos que elle teceu, diversos e contradictorios, como � de raz�o em analogas situa��es. Apenas direi por alto que elle pensou tres vezes em morrer, duas em fugir � cidade, quatro em ir affogar a sua dor mortal naquelle ainda mais mortal pantano de corrup��o em que apodrece e morre tantas vezes a flor da mocidade. Em tudo isto era o seu espirito apenas um joguete de sensa��es continuas e variadas. A for�a, a permanencia do affecto n�o lhe bastava a dar seguimento e realidade �s concep��es vagas de seu cerebro,—enfermo, ainda quando estava de saude.
A ideia do suicidio fincou-se-lhe mais a dentro no espirito, certa tarde em que elle saiu a espairecer, e viu um enterro que passava, caminho do Caj�. O prestito era triste,—ainda mais triste pela indifferen�a que se lia no rosto dos que iam piedosamente acompanhando o morto. Estev�o descobriu-se e sinceramente desejou ir alli dentro, mettido naquellas estreitas tabuas de pinho, com todas as suas dores, paix�es e esperan�as.
—N�o tenho outro recurso, pensou elle; � necessario que morra. � uma d�r s�, e � a liberdade.
Ao voltar para casa, uma crean�a que brincava na rua, em camisa, com os p�s na agua barrenta da sargeta, fel-o parar alguns instantes, invejoso daquella boa fortuna da infancia, que ri com os p�s no charco. Mas a inveja da morte e a inveja da innocencia foram ainda substituidas pela inveja da felicidade, quando ao recolher-se viu as janellas abertas de uma casa visinha, e a sala illuminada, e uma noiva coroada de flores de laranjeira, a sorrir para o noivo, que sorria igualmente para ella, ambos com o sorriso indefinivel e unico da occasi�o.
Os cinco dias correram-lhe assim, travados de enojo, de desespero, de lagrimas, de reflex�es amargas, de suspiros inuteis, at� que raiou a aurora do sexto dia, e com ella,—ou pouco depois della, uma carta de Botafogo. Estev�o quando viu o creado da baroneza, � porta da saia, com uma carta na m�o, sentiu tamanho alvor��o, que n�o ouviu nada do que elle lhe disse. Supporia que a carta era de Guiomar? Talvez; mas a illus�o durou os poucos instantes que elle gastou em romper a sobrecarta e desdobrar a folha de papel que vinha dentro.
A carta era da baroneza.
A baroneza perguntava-lhe graciosamente se elle havia morrido, e pedia que fosse falar-lhe �cerca da demanda que ella trazia. Estev�o chegara j� ao estado de s� esperar um pretexto para transigir comsigo mesmo; n�o podia havel-o melhor. Escreveu rapidamente duas linhas de resposta, e � uma hora da tarde apeava-se de um tilbury � porta da funesta e deliciosa casa, onde havia passado as melhores e as peores horas da vida.
—Sabe porque raz�o lhe dei este incommodo, al�m do prazer que tinha em vel-o? perguntou a baroneza logo depois dos primeiros comprimentos.
—Disse-me que era por causa da demanda...
—Sim, precisamos assentar algumas cousas, antes da nossa partida.
—V. Ex. sae da c�rte?
—Vamos para o ro�a.
Estev�o empallideceu. Na situa��o delle, aquella viagem era a melhor cousa que lhe podia acontecer; comtudo, fez-lhe mal a noticia. A conversa que se seguiu foi toda sobre o assumpto forense, e durou uma longa hora, sem que apparecesse Guiomar. Ao despedir-se atreveu-se Estev�o a perguntar por ella.
—Anda passeando, respondeu a baroneza.
Estev�o despediu-se da constituinte, que o acompanhou at� � porta da sala, repetindo-lhe algumas recommenda��es, que o advogado mal p�de ouvir e absolutamente lhe n�o ficaram de memoria.
A esperan�a de ver a mo�a levara-o, mais que tudo, �quella casa; sa�a sem ter o gosto de a contemplar ainda uma vez; mais do que isso, amea�ado de a n�o ver t�o cedo, ou quem sabe se nunca mais. Ia elle a reflectir nisto e a approximar-se da porta, onde parava ao mesmo tempo um carro. Estev�o estremeceu naturalmente, ante de ver quem ia apear-se; grudou-se ao portal, com os olhos fitos na portinhola, que um lacaio abria apressadamente.
A primeira figura que desceu foi a nossa conhecida Mrs. Oswald, que o fez, sem dar tempo a que Estev�o lhe offerecesse a m�o. O bacharel, desde que a vira, approximara-se rapidamente da portinhola.
Guiomar desceu logo depois. A m�o apertada na luva c�r de perola pousou levemente na m�o de Estev�o que estremeceu todo. A mo�a fez-lhe um comprimento risonho, murmurou um agradecimento e recolheu-se com a ingleza. Era pouco; mas esse pouco alvoro�ou o bacharel, que enfiou d'alli para a cidade, em direc��o ao escriptorio.
Luiz Alves admirou-se de o ver; n�o foi com um espanto de seis dias, como devera ser, mas de quarenta e oito horas, quando muito. Que admira? A preocupa��o de Luiz Alves por aquelles dias era a candidatura eleitoral; a boa nova devia chegar-lhe na primeira mala do norte. Ora, em boa raz�o, um homem que est� prestes a ser inscripto nas tabuas do parlamento, n�o p�de cogitar muito dos amores de um rapaz, ainda que o rapaz seja amigo e os amores verdadeiros.
Estev�o n�o perdeu tempo em circumloquios; foi entrando e entornando a alma toda, afflicta e consolada a um tempo, no seio do velho amigo e companheiro. A cada trecho da confiss�o plena que elle alli lhe fez, respondia um commento, ora serio, ora gracioso de Luiz Alves. Quando Estev�o por�m lhe deu noticia de que a familia da baroneza ia para a ro�a, Luiz Alves recolheu o meio-riso que lhe pousava nos labios desde come�o, e com a mais subita e sincera admira��o exclamou:
—Para a ro�a!
—Disse-o agora mesmo a baroneza.
—Mas...
Luiz Alves n�o acabou; olhou ainda meio duvidoso para Estev�o, e ficou algum tempo calado, a co�ar o queixo com a faca de marfim e a olhar para uma gravura que pendia na parede fronteira.
—Na situa��o em que estou, continuou Estev�o, has de dizer que a viagem � uma felicidade para mim. Pois n�o �; n�o admitto a viagem. Se ella sair da c�rte, eu saio tamb�m.
—Tu est�s doudo!
—Talvez.
Luiz Alves saiu daquella natural indifferen�a com que o ouvia, e lhe falava sempre em tal assumpto. Falou-lhe carinhoso,—talvez pela primeira vez na vida. O que lhe disse foi apenas ume edi��o augmentada de que lhe havia dito em anteriores occasi�es,—agora com maior fundamento, porque depois do formal desengano de Guiomar, n�o havia outro recurso mais que ir esquecel-a de todo.
—Oh! isso nunca! interrompeu Estev�o. Demais, n�o sei, n�o estou certo se ella falava de cora��o naquella tarde...
A candidez com que Estev�o disse isto era a fiel traduc��o de seu espirito, e a raz�o de taes palavras, n�o a procure o leitor em outra parte mais que n�o seja aquelle sorriso de ha pouco, ao p� do carro, sorriso que lhe bailava no cerebro, como raio de sol coado por entre nuvens negras de tempestade.
Luiz Alves sacudiu a cabe�a e enfiou os olhos pelas folhas rabiscadas de uns autos que tinha diante, e que entrou a folhear vagarosamente. Subito, bateu uma pancadinha, com a m�o espalmada sobre os papeis, e levantou a cabe�a:
—Ha um meio talvez de saber tudo, disse elle, de saber se ella verdadeiramente te ama, ou... Posso tenta-lo, com uma condi��o.
—Qual?
—A condi��o de eliminares as tuas preten��es. Que diabo ganhas tu em nutrir uma paix�o sem efficacia nem remedio?
Esta promessa era a mais dura que se podia arrancar de um cora��o, em que as gera��es de esperan�as se succediam quasi sem solu��o de continuidade; fel-a, todavia, Estev�o, talvez com a secreta resolu��o de a trahir.
Luiz Alves ficou s� dahi a alguns minutos. As ultimas palavras que disse ao collega foram duas ou tres pilherias de rapaz; mas apenas ficou s� tornou-se serio, e inclinando o corpo para a frente, com os bra�os na secretaria, e a raspar as unhas com um canivete, alli esteve largo tempo, como a reflectir, longe de Estev�o, que ali�s j� n�o �a perto, e ainda mais longe dos autos que tinha diante de si. Mas em que pensava elle, se n�o era em Estev�o, nem nos autos, nem tambem, por agora, nas suas esperan�as eleitoraes Paciencia, leitor; sabel-o-has daqui a nada. Contenta-te com a noticia de que, ao cabo de vinte minutos daquella abstrac��o, Luiz Alves volveu a si, proferindo em alta voz esta simples palavra:
—N�o ha duvida; � uma ambiciosa.
E descativado daquella preoccupa��o, enterrou-se de todo na leitura dos autos.
Mal recome��ra Luiz Alves a leitura dos autos, entrou no gabinete o criado apresentando-lhe um bilhete de visita.
—Que entre! disse o advogado lendo o nome do sobrinho da baroneza.
E logo se ouviu no corredor o passo medido e lento do mancebo, que d'ahi a nada assomava � porta do gabinete, fazendo uma cortezia, sisuda, mas graciosa.
—Venho incommoda-lo, doutor? perguntou Jorge.
—Pelo amor de Deus! exclamou o advogado erguendo-se e indo buscal-o � porta. N�o me incommodaria em caso nenhum; agora, sobretudo, que a leitura de uns papeis me fatigou sobre maneira, a maior fortuna que eu poderia desejar � a presen�a de um homem de espirito.
Jorge agradeceu este comprimento um pouco emphatico, e retribuiu-o com outra lisonjaria muito mais extensa e de maior alcance. Quer dizer que elle vinha pedir alguma cousa. Effectivamente, passados os minutos de introito e desfiadas as generalidades, Jorge impertigou-se mais do que at� alli estivera e desfechou esta pergunta abrupta:
—Sabe que venho pedir-lhe uma cousa grave?
Luiz Alves inclinou-se.
—Grave e simples ao mesmo tempo, continuou o sobrinho da baroneza; mas antes disso precisava saber se � t�o amigo da nossa familia, como ella o � do senhor.
—Oh! de certo!
—O senhor � o menos assiduo, talvez, das pessoas que l� v�o, apezar de visinho; s� agora o vejo alli mais a miudo; entretanto � como flor que se trahe pelo aroma; minha tia tem a seu respeito a melhor opini�o do mundo; acha-lhe uma gravidade, e eu tambem a sinto, e nem comprehendo que um homem possa ser outra cousa. Os taes espiritos futeis...
—S�o insupportaveis, concluiu Luiz Alves ancioso por chegar ao objecto da visita.
O objecto era a viagem da baroneza. Um commendador, amigo do finado bar�o, e fazendeiro em Cantagallo, tinha promessa da viuva, havia dous annos, de ir l� passar algum tempo. A baroneza esquivara-se sempre a cumprir a palavra dada; agora por�m, tal fora a insistencia, que se resolvera a ir. Ora, o que Jorge vinha propor era—, express�es delle,—uma conjura��o de amigos para dissuadir a tia daquelle projecto. Affian�ava ao advogado que, ainda descoberta a conjura��o, teria elle a vida s� e salva.
Luiz Alves suppoz a principio que aquillo era um simples pretexto; mas, tendo observado que a bella Guiomar n�o era indifferente ao rapaz, comprehendeu que este tinha na conjura��o proposta, um interesse inteiramente pessoal. Emfim, Jorge chegou a confessar que, se a tia insistisse em sair da c�rte, elle n�o tinha remedio sen�o acompanha-la.
O acc�rdo n�o foi difficil; ficou assentado que fariam todos os esfor�os para dissuadir a baroneza. Jorge quiz sair logo; reteve-o Luiz Alves algum tempo mais, com express�es de louvor habilmente tecidas e mais habilmente encastoadas na conversa��o; e tambem deixando-se ir � fei��o do espirito delle, acceitando-lhe as ideias e os preconceitos, e applaudindo-os discretamente,—serio, quando elles o eram ou pareciam ser,—chocarreiro quando vinham com ar de gra�a,—respondendo emfim a todos os gestos e meneios do outro, como faz o espelho por officio e obriga��o:—toda a arte em summa de tratar os homens, de os attrahir e de os namorar, que elle aprendera cedo e que lhe devia aproveitar mais tarde na vida publica.
De noite foi Luiz Alves � casa da baronesa, onde poucas pessoas havia, todas de intimidade. A dona da casa, sentada na poltrona do costume, tinha ao p� de si uma senhora da mesma edade que ella, egualmente viuva, e defronte as sui�as brancas e aposentadas de um ex-funccionario publico. N'um soph�, viam-se Mrs. Oswald e Jorge a conversarem em voz, ora muito baixa, ora um pouco mais elevada. Adiante, dous mo�os contavam a duas senhoras o enredo da ultima pe�a do Gymnasio. Mais longe, uma mo�a da visinhan�a gabava a outra a tesoura de Mme. Bragaldi, que pedia me�as, dizia ella, ao pincel do scenographo, seu marido. Emfim, junto a uma das janellas via-se uma mocinha, viva e bonita, a dizer mil ninharias graciosas a outra pessoa, que era nada menos que a nossa conhecida Guiomar. A conversa, assim dividida, tornava-se �s vezes geral, para recair logo no particularismo anterior; os grupos modificavam-se tambem de quando em quando, do mesmo modo que o assumpto, e assim se iam matando agradavelmente as horas, que n�o resistiam, coitadas, nem apressavam o passo um minuto sequer.
Luiz Alves aggregara-se ao grupo da baroneza, ao qual n�o tardou juntar-se Jorge. O advogado teve a discri��o de esperar que o assumpto viesse de si, se viesse, ou de o introduzir na conversa, quando lhe parecesse de fei��o. Mas Jorge, que estava impaciente, arrastou o assumpto ao debate. Luiz Alves, mostrou-se fiel � palavra dada; declarou amavelmente que se oppunha � viagem, como visinho e amigo, que reclamaria em ultimo caso o auxilio de for�a publica; que era um erro e um crime deixar aquella casa viuva da benevolencia e da gra�a e do gosto e de todas as mais qualidades excellentes que alli iam achar os felizes que a frequentavam; que, emfim, o mal era tamanho, que n�o deixaria de ser peccado, posto n�o viesse apontado nos cathecismos, e como peccado, seria de for�a punido, com amargas penas, no outro seculo, pelo que, e o mais dos autos, era sua decis�o que a baroneza devia ficar.
Todas estas raz�es foram ditas como deviam de ser, de um modo galante e folgaz�o, a que a baroneza respondia egualmente, e que n�o daria nada mais de si, se Luiz Alves, mudando de estylo, n�o fosse p�r o assumpto em differente terreno.
—Digamos a verdade, Sra. baroneza, a viagem ha de ser-lhe immensamente incommoda, se for so isso; suas for�as n�o s�o de certo eguaes �s de seus primeiros annos; sua saude � melindrosa e n�o poder� soffrer tanta fadiga. Confesso que falo em nome de certo interesse pessoal de amigo e de visinho; mas a principal raz�o n�o � essa. Se houvesse um motivo urgente, bem; mas tratando-se apenas de uma promessa feita ha tanto tempo, seria crueldade da minha parte n�o insistir que ficasse.
A baroneza defendia-se, e Luiz Alves n�o tardou em reconhecer de si para si que ella n�o se defendia com o vigor de uma resolu��o original e propria. A conversa, entretanto, torn�ra-se mais geral; de todos os lados partiam votos de opposi��o.
Guiomar havia j� alguns minutos que n�o attendia � interlocutora; tinha o ouvido afiado e assestado sobre o grupo da madrinha. Ninguem a observava; mas � privilegio do romancista e do leitor ver no rosto de uma personagem aquillo que as outras n�o veem ou n�o podem ver. No rosto de Guiomar podemos n�s ler, n�o s� o tedio que lhe causava aquella opini�o unanime contra o projecto da baroneza, mas ainda a express�o de um genio imperioso e voluntario.
—Estamos de accordo, creio eu? perguntou Luiz Alves olhando alternadamente para a baroneza e as outras pessoas.
—N�o � poss�vel, doutor, respondia a boa senhora.
—De certo que n�o � poss�vel, interveiu Guiomar do lugar onde estava. A viagem n�o offerece risco, nem minha madrinha est� invalida. Demais, � uma promessa feita; n�o se pode deixar de cumprir.
Esta opini�o, dita em tom s�cco e firme, ainda que a voz nada perdesse do seu natural avelludado, equivaleu a um pouco de agua fria lan�ada na fervura triumphante dos animos.
—Guiomar tem raz�o, disse a baroneza; j� agora � preciso ir; s�o apenas tres ou quatro mezes.
Luiz Alves olhou longamente para Guiomar, como a procurar ver-lhe no rosto todas antecedencias da resolu��o da baroneza. A opposi��o afrouxara; Jorge chamou em v�o o advogado em seu auxilio. A resolu��o da tia, se alguma vez fora abalada, tornara-se outra vez firme.
Guiomar, entretanto, erguera-se e chegara ao grupo da madrinha. Jorge fitou-a com uma express�o de vaidade e cobi�a. Luiz Alves, que se achava de p�, recuou um pouco para deixal-a passar. Os olhos com que a contemplou n�o eram de cobi�a nem de vaidade; a leitora, que ainda lembrar� da confiss�o por elle mesmo feita a Estev�o, suppor� talvez que eram de amor. Talvez,—quem sabe?—amor um pouco socegado, n�o louco e cego como o de Estev�o, n�o pueril e lascivo, como o de Jorge, um meio termo entre um e outro,—como podia havel-o no cora��o de um ambicioso.
—O Dr. Luiz Alves defende causas m�s, disse Guiomar sorrindo para elle; n�o se trata de uma cousa impossivel. Quanto a mim, Cantagallo s� tem um inconveniente; sera menos divertido que a c�rte; mas o tempo passa depressa...
—Nesse caso, disse Jorge suspirando eu tambem dispenso theatros e bailes; sacrifico-me � familia.
—Queres ir comnosco? perguntou a baroneza alegremente.
—Que duvida!
Guiomar mordeu o labio inferior, com uma express�o de despeito, que p�de conter e abafar, sem que ninguem a percebesse, ninguem, excepto Luiz Alves. Um sorriso tranquillo e perspicaz ro�ou os labios do advogado, em quanto a mo�a, para esconder a impress�o que lhe ficara, de novo se dirigiu � janella, onde esteve alguns momentos s�sinha, meia voltada para f�ra e meia guardada pela sombra que alli fazia a cortina. Um rumor de passos fel-a voltar-se para dentro. Era Luiz Alves.
—Ah! disse ella fingindo-se tranquilla; agrade�o-lhe n�o haver insistido mais nos seus conselhos.
—A inten��o era boa, respondeu Luiz Alves em voz baixa; mas ser� agora excellente; nem tudo est� perdido: eu me incumbo de salvar o resto.
Guiomar franziu a testa com o mais vivo e natural espanto; tal espanto que parecia havel-a feito esquecer outro sentimento, igualmente natural:—o do despeito que lhe causaria aquella singular familiaridade. Mas o assombro dominou tudo; Guiomar sentiu que elle lera nella a raz�o da insistencia e o desgosto do resultado.
A ruga desfez se a pouco e pouco, mas a mo�a n�o retirou logo os olhos. Havia nelles uma interroga��o imperiosa, que a alma n�o se atrevia a transmittir aos l�bios. Se ha nos do leitor alguma interroga��o, esperemos o capitulo seguinte.
Luiz Alves comprehendera toda a express�o dos olhos de Guiomar; era, por�m, homem frio resoluto. Inclinou o busto com toda a gra�a correcta e de bom tom, e disse-lhe na voz mais branda que lhe permittia o seu org�o forte e severo:
—Parece-lhe que fui um pouco audaz, n�o �? Fui apenas sincero; e ainda que a sua delicadeza me condemne, estou certo de que ha em seu cora��o misericordia de sobra...
Guiomar tinha readquirido toda a posse de si mesma.
—Est� enganado, disse ella, n�o o condemno, pela simples raz�o de que o n�o entendi.
—Tanto melhor, redarguiu Luiz Alves sem pestanejar; o meu delicto nesse caso n�o passou da esphera da inten��o.
—Mas... referia-se � viagem?
—Referia-me; perguntava quando iam.
Esta presen�a de espirito de Luiz Alves ia muito com o genio de Guiomar; era um la�o de sympathia. A mo�a respondeu que o commendador viria buscal-as dahi a quinze ou vinte dias.
—Tres mezes apenas? perguntou o advogado.
—Tres ou quatro.
—Quatro mezes n�o � a eternidade, mas Cantagallo, para uma carioca da gemma, hade ser um degredo, ou quas�... Oxal�,—continuou Luiz Alves, concluindo mais depressa do que queria, ao ver que Jorge se approximava da janella,—oxal� n�o lhe fa�a esse exilio esquecer o que solemnemente lhe digo neste momento: que a senhora tem uma alma grande e nobre, e que eu a admiro!
Jorge cheg�ra; a conversa tinha de acabar ou tomar differente rumo.
As ultimas palavras de Luiz Alves eram singularmente dispostas para deixar sulco profundo na memoria da mo�a. N�o era uma declara��o de amor, nem uma cortezania de sala cousas todas que ella ouvira muita vez, que podiam lisongea-la, e de certo a lisongeavam; era mais que um comprimento e n�o chegava a ser uma declara��o. Commo��o, n�o a havia na voz do advogado; firmeza, sim, e um ar de convic��o profunda. Guiomar olhou para elle quasi sem dar pela presen�a de Jorge; mas Luiz Alves voltara-se para o recem-chegado e falava-lhe em tom jovial, bem differente daquelle que empreg�ra pouco antes.
Se esse contraste era premeditado,—n�o sei se o era,—n�o podia vir mais de fei��o ao espirito de Guiomar. De quantos homens a mo�a trat�ra at� alli, era o primeiro que lhe inspirava curiosidade, e tambem, naquella occasi�o, a primeira pessoa que s� compadecia della. Veja o leitor:—curiosidade e gratid�o;—veja se ha duas azas mais proprias para arrojar uma alma no seio de outra alma,—ou de um abysmo, que � �s vezes a mesma cousa.
Eu disse—compadecia—e esta s� palavra, desacompanhada de outra cousa, p�de fazer crer ao leitor que, durante aquelles dias em que a perdemos de vista, tornara-se Guiomar uma creatura desditosa. Nada disso; a situa��o era a mesma, n�o a mesma anteriormente � carta de Jorge, mas a mesma da noite em que ella a recebeu, situa��o, de certo, assaz sombria e carregada para um cora��o que receia ser constrangido, mas n�o desesperada nem angustiosa.
A baroneza, se soubera dos factos, ou se pudera ler na alma da mo�a, seria a primeira a dar-lhe todas as consola��es. Mas n�o sabia. Seu desejo,—ou antes o sonho da velhice, como ella dizia n'um dos anteriores capitulos,—era deixar felizes a afilhada e o sobrinho, e entendia que o melhor meio de os deixar felizes era casal-os um com o outro. A noticia que tinha do cora��o da mo�a, a este respeito, era incompleta ou inexacta; pintavam-lhe como frieza o que era repugnancia. Mrs. Oswald dava-lhe sempre esperan�as de exilo feliz e proximo, as coleras da mo�a n�o lh'as contava nunca. Da carta de Jorge n�o soube, nem da scena havida na alcova. O casamento continuava a apparecer-lhe com todas as probabilidades de uma esperan�a realizavel.
Dir� a leitora que o sobrinho n�o merecia tanto zelo nem t�o pertinaz esperan�a, e ter� raz�o; mas os olhos da baroneza n�o s�o os da leitora; ella s� lhe via o lado bom,—que era realmente bom,—ainda que de uma bondade relativa; mas n�o via o lado mau, n�o via nem podia ver-lhe a frivolidade grave do espirito, nem o genero de affecto que se lhe gerava no cora��o.
Jorge era o seu unico parente de sangue,—filho de um irm� que viv�ra infeliz e mais infelizmente morr�ra, n�o repudiada, mas aborrecida do marido, circumstancia que lhe tornava caro aquelle mo�o. Mais do que a afilhada, n�o; nem tanto, de certo; o cora��o n�o chegaria para dividir-se egualmente em t�o grandes por��es; queria-lhe, por�m, muito, quanto bastava para desejal-o feliz, e trabalhar por fazel-o. Accrescentemos que o destino da irm� sempre lhe estava presente ao espirito, e que ella receiava egual sorte a Guiomar; em Jorge parecia-lhe ver todos os dotes necessarios para tomal-a venturosa.
Infelizmente, Mrs. Oswald, sabedora daquelles secretos desejos e mais ou menos confidente dos sentimentos de Jorge, achara azada occas��o esta para patentear toda a gratid�o de que estava possuida e a profunda amizade que a ligava � familia da baroneza. Interpoz-se para servir aos outros, e mais ainda a si propria. Viu a difficuldade, mas n�o desanimou; era preciso armar ao reconhecimento da baroneza. Por isso n�o hesitou em confiar a Guiomar o desejo da madrinha, exagerando-o, entretanto,—por que nunca a baroneza dissera que �tal casamento era a sua campanha,� e Mrs. Oswald attribuiu-lhe esta phrase mortal para todas as esperan�as e sonhos da mo�a. Mas, se falava demasiado ao p� de uma, era muito mais sobria de palavras com a outra, e da exagera��o ou da attenua��o da verdade resultara aquelle perenne estado de luta abafada, de receios, de indecis�o e de amarguras secretas. Conv�m dizer, para dar o ultimo tra�o ao perfil, que esta Mrs. Oswald n�o seguia s� a voz do seu interesse pessoal, mas tamb�m o impulso do proprio genio, amigo de p�r � prova a natural sagacidade, de tentar e levar a cabo uma destas opera��es delicadas e difficeis, de maneira que, se houvesse uma diplomacia domestica,—ou se se creassem cargos para ella, Mrs. Oswald podia contar com um lugar de embaixatriz.
Vindo agora � narra��o dos successos da historia, cumpre que o leitor saiba, que a carta de Jorge n�o teve resposta escripta nem verbal. No dia seguinte ao da entrega foi elle jantar a Botafogo; mas Guiomar n�o sa�ra do quarto, a pretexto de uma dor de cabe�a; a baroneza passou o dia com ella; Jorge apenas conseguiu saber, quando de l� saiu, que a mo�a ia melhor. Nos subsequentes dias nenhuma resposta foi �s m�os do pretendente, nem elle conseguiu haver uns cinco minutos de conversa solitaria com a mo�a; Guiomar esquivava-se sempre, com aquella arte summa da mulher que aborrece, e que � nem mais nem menos egual � da mulher que ama.
Um dia, por�m, n�o houve meio de fugir; e Jorge, que n�o tinha nenhuma commo��o na voz, porque n�o tinha muita no cora��o, olhou para ella com olhos direitos e francamente lhe pediu uma palavra de esperan�a ou de desengano. A mo�a hesitou alguns segundos; contudo era preciso responder. Venceu a repugn�ncia dizendo-lhe com um frio sorriso:
—Nem uma nem outra cousa.
—Nem desengano? perguntou Jorge alvoro�ado.
—Ninguem pode dar nem uma cousa nem outra, disse ella; costumamos acceital-as do nosso destino.
N�o era responder, como v� o leitor; Jorge ia pedir uma decis�o mais transparente, mas a mo�a aproveitara-se da primeira impress�o e esquivara-se. Quando elle recobrou a voz n�o viu mais que a fimbria do vestido, que se perdia na volta de uma porta.
Guiomar encurtou as redeas � familiaridade que existia entre ella e Jorge; mas, se o tratava com mais reserva, n�o o fazia com sequid�o nem frieza, nem deixava de ser polida e affavel. A dignidade natural que havia em toda a sua pessoa servia-lhe, al�m disso, como de uma torre de marfim, onde ella se acastellava e mantinha em respeito o pretendente.
Dos dous homens que lhe queriam, nenhum lhe falava � alma; ella sentia que Estev�o pertencia � phalange dos tibios, Jorge � tribu dos incapazes, duas classes de homens que n�o tinham com ella nenhuma affinidade electiva. N�o egualava, de certo, os dous pretendentes; um era simplesmente trivial, outro sentimental apenas; mas nenhum delles capaz de crear por si s� o seu destino. Se os n�o egualava, tambem os n�o via com os mesmos olhos; Jorge causava-lhe tedio, era um Diogenes de especie nova; atravez da capa rota da sua importancia, via-se-lhe palpitar a triste vulgaridade. Estev�o inspirava-lhe mais algum respeito; era uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, n�o para vencer, uma especie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem azas para voar at� l�. O sentimento de Guiomar em rela��o a Estev�o n�o podia nunca chegar ao amor; tinha muito de superioridade e perd�o.
Com outra indole, aspira��es differentes e vivida em diversa esphera, ama-lo-hia com certeza, do mesmo modo que elle a amava. Mas a natureza e a sociedade deram-se as m�os para a desviar dos gozos puramente intimos. Pedia amor, mas n�o o quizera fruir na vida obscura; a maior das felicidades da terra seria para ella o maximo dos infortunios, se lh'a puzessem n'um ermo. Crean�a, iam-lhe os olhos com as sedas e as joias das mulheres que via na chacara contigua ao pobre quintal de sua m�e; mo�a, iam-lhe do mesmo modo com o espectaculo brilhante das grandezas sociaes. Ella queria um homem que, ao p� de um cora��o juvenil e capaz de amar, sentisse dentro em si a for�a bastante para subil-a aonde a vissem todos os olhos. Voluntariamente, s� uma vez acceitara a obscuridade e a mediania; foi quando se propoz a seguir o officio de ensinar; mas � preciso dizer que ella contava com a ternura da baroneza.
J� o leitor ficou entendendo que a viagem a Cantagallo era obra quasi exclusiva de Guiomar. A baroneza relutara a principio, como das outras vezes fizera, e o commendador pouca esperan�a tinha j� de a ver na fazenda. Mas o voto de Guiomar foi decisivo. Ella fortaleceu, com as suas, as raz�es do commendador, allegando n�o s� a obriga��o em que a madrinha estava de desempenhar a palavra dada, mas ainda a vantagem que lhe podiam trazer aquelles tres mezes de vida roceira, longe das agita��es da c�rte; emfim, invocou o seu proprio desejo de ver uma fazenda e conhecer os habitos do interior.
N�o havia tal desejo, nem cousa que se parecesse com isso; mas Guiomar sabia que na balan�a das resolu��es da madrinha era de grande peso a satisfa��o de um gosto seu. O sacrificio duraria tres ou quatro mezes; ella afrontaria, por�m, dez ou doze se tantos fossem necessarios, para fugir algum tempo �s preten��es de Jorge, sem embargo de lhe repugnar todo o viver que n�o fosse a vida fastosa e agitada da c�rte. Eu, que sou o Plutarcho desta dama illustre, n�o deixarei de notar, que, neste lance, havia nella um pouco de Alcibiades,—aquelle gamenho e delicioso homem de Estado, a quem o despeito tambem deu for�as um dia para supportar a frugalidade spartana.
Infelizmente, Jorge reduziu todos esses calculos a nada. Ella contava com o seu demasiado apego aos regalos da c�rte, n�o contava com as suggest�es de Mrs. Oswald, que percebera o plano, e torcera a primeira resolu��o de Jorge, que era ficar e esperar. O sacrificio da parte delle era compensado pela probabilidade da victoria, a qual n�o consistia s� em haver por esposa uma mo�a bella e querida, mas ainda em tornar muito mais summarias as partilhas do que a baroneza deixaria por sua morte a ambos. Esta considera��o, que n�o era a principal, tinha ainda assim seu peso no espirito de Jorge, e, sejamos justos, devia tel-o: possuir era o seu unico officio. Assim era que n�o s� a mo�a deixava de obter um bem, mas cahia de um mal em outro maior; tel-o ao p� de si, onde as distrac��es seriam menos promptas e variadas, equivalia a adoecer de fastio e morrer de inani��o.
Imagine-se por isso em que estado lhe ficou o espirito depois da declara��o de Jorge. N�o havia meio de fugir ao pretendente, era preciso tragal-o. Esta perspectiva abateu-lhe totalmente o animo. Uma confidente, em taes situa��es, � um presente do ceu; mas Guiomar n�o a tinha, e se alguma pessoa lhe merecesse tal confian�a, � certo ou quasi certo que lhe n�o diria nada. Suas dores eram altivas, as tristezas de seu cora��o tinham pudor. Espiritos desta casta ignoram a consola��o que ha, nas horas de crise, em se repartirem com outro; triste, mas feliz ignorancia que lhes poupa muita vez o contacto de uma consci�ncia aleivosa e ruim.
No meio do longo reflectir, soaram-lhe na memoria as palavras de Luiz Alves; ella ouviu-as de novo, taes quaes elle as proferira, desde a phrase descortez at� � express�o respeitosa. Uma era o commentario da outra, e ambas podiam explicar-lhe o caracter de Luiz Alves, se tivesse alguns elementos mais para conhece-lo; em todo o caso, era a ponta do veu levantada. Embora se lhe n�o podesse ler no fundo do espirito, via-se desde j� qual era o seu methodo de ac��o.
Qualquel outro homem, depois do effeito produzido pela primeira declara��o, n�o se atreveria ou n�o lhe importaria tentar mais nada para desfazer o projecto da viagem. Mas o espirito de Luiz Alves tinha a obstina��o do dogue. Era-lhe necessario que a familia da baroneza n�o saisse da c�rte; este objecto havia de alcan�a-lo a todo o trance. Elle espreitava as occasi�es, aproveitava as circumstancias, tinha a habilidade de intercalar o pedido em qualquer retalho de conversa��o, onde menos apropriado pareceria a qualquer outro. Jorge applaudia-o com as for�as todas de que podia dispor o seu interesse. A baroneza oppunha �s suggest�es do advogado a resistencia molle e atada de quem deseja aquillo mesmo que recusa.
—O doutor � terrivel, dizia ella. Em se lhe mettendo uma cousa na cabe�a, ninguem mais o tira dahi.
—Justamente, � uma ideia fixa. Sem ideia fixa n�o se faz nada bom neste mundo.
Guiomar sustentava a resolu��o da madrinha, posto n�o o fizesse a miudo, nem no mesmo tom secco e imperioso da primeira noite. Seu impulso era ser coherente; ao mesmo tempo n�o queria parecer aos olhos de Luiz Alves que lhe acceitava o concurso para obter o que ali�s desejava de todo o cora��o; ser�a laval-o da primeira culpa.
O argumento que mais influia no animo de todos, o que devera ter affastado a ideia de semelhante viagem, era o perigo de affrontar o cholera-morbus que por aquelle tempo percorria alguns pontos do interior. Um dia de manh� soube-se que em Cantagallo havia apparecido o terr�vel inimigo. Desta vez Luiz Alves triumphou sem dizer palavra; a baroneza recuou deante daquelle facto brutal.
A viagem desfez-se pois, a contento de todos, salvo talvez de Mrs. Oswald, que receiava muito da mocidade casadeira da c�rte, e dos bellos olhos castanhos de Guiomar. Mrs. Oswald temia ver surgir a cada passo um novo inimigo emboscado em algum theatro ou baile, ou quando menos na rua do Ouvidor, e n�o via que o inimigo novo podia ser que estivesse litteralmente ao p� da porta. A sagacidade da ingleza desta vez foi um tanto myope. A raz�o � que Luiz Alves, em todos aquelles seus preliminares, houve-se com habilidade; longe de procurar a mo�a, parecia nada haver alterado nos seus sentimentos, nem desejar mudar a especie de rela��es que at� alli mantinha. Guiomar, entretanto, n�o podia deixar de comparar aquella especie de attenciosa indifferen�a que havia delle para ella, com as palavras que anteriormente lhe ouvira, e o resultado da compara��o n�o lhe parecia muito claro.
Na noite do mesmo dia em que ficou assentado defferir a viagem para melhores tempos, achavam-se em casa da baroneza algumas pessoas de f�ra; Guiomar, sentada ao piano, acabava de tocar, a pedido da madrinha, um trecho de opera da moda.
—Muito obrigada, disse ella a Luiz Alves que se approxim�ra para dirigir-lhe um comprimento. Est� alegre! Parece que � a satisfa��o de me haver mallogrado o maior desejo que eu tinha nesta occasi�o.
—N�o fui eu, disse elle, foi a epidemia.
—Sua alliada, parece.
—Tudo � alliado do homem que sabe querer, respondeu o advogado dando a esta phrase um tanto emphatica o maior tom de simplicidade que lhe podia sair dos labios.
Guiomar curvou a cabe�a e esteve alguns instantes a perpassar os dedos pelas teclas, em quanto Luiz Alves, tirando de cima do piano outra musica, dizia-lhe:
—Podia dar-nos este peda�o de Bellini, se quizesse.
Guiomar pegou machinalmente na musica e abriu-a na estante.
—Era ent�o vontade sua? perguntou ella continuando o assumpto interropido do dialogo.
—Vontade certamente, porque era necessidade.
—Necessidade,—tornou ella come�ando a tocar, menos por tocar que por encobrir a voz; mas necessidade por que?
—Por uma raz�o muito simples, porque a amo.
A musica estacou. Guiomar erguera-se de um salto. Mas nem o gesto da mo�a, nem a sorpresa das outras pessoas, perturbou o advogado; Luiz Alves inclinou-se para o mocho, como a concertal-o, e voltando-se para Guiomar, disse-lhe graciosamente:
—Pode sentar-se-agora; est� seguro.
Guiomar sentou-se outra vez muda, despeitada, a bater-lhe o cora��o como nunca lhe batera em nenhuma outra occasi�o da vida, nem de susto, nem de colera, nem... de amor, ia eu a dizer, sem que ella o houvesse sentido jamais. N�o se demorou muito tempo alli; com a m�o tremula folheou a musica que estava aberta na estante, deixou-a logo e levantou-se.
Nestes derradeiros movimentos ninguem reparou; e se alguem pudesse reparar em alguma cousa, a mo�a tomara a peito desvanecer todas as suspeitas. A primeira impress�o fora profunda, mas Guiomar tinha for�a bastante para dominar-se e fechar todo o sentimento no cora��o.
O que se passou depois, quando, livre de olhos estranhos, p�de entregar-se a si mesma, isso ninguem soube, a n�o serem as paredes mudas do quarto, ou o raio de lua coado pelo tecido raro das cortinas das janellas, como a espreitar aquella alma faminta de luz. Soube-o, talvez, o seu espelho, quando no dia seguinte lhe reflectiu o rosto desfeito e os olhos quebrados. Se foi a medita��o nocturna que os amolleceu e apagou, n�o o perguntou elle, naturalmente porque o sabia; mas talvez advertiu comsigo que se eram assim mais bellos, pediam outro rosto em que caissem melhor. O de Guiomar queria-os como elles eram, severos, firmes e brilhantes.
A baroneza tambem n�o deixou de ver que a afilhada n�o accordara com o mesmo ar do costume; achou-a taciturna e distrahida.
—Eu, madrinha? perguntou Guiomar simulando um sorriso de admira��o.
—Ser� engano de meus olhos.
—N�o � outra cousa; estou como sempre, como hontem, como amanh�. Passei a noite um pouco mal, � verdade; mas o que tive desapareceu inteiramente. A prova...
Guiomar parou neste ponto, chegou-se � madrinha e deu-lhe um beijo.
—A prova, continuou ella, � que ainda hoje me acha bonita, n�o �?
—Crean�a! respondeu a baroneza, dando-lhe uma pancadinha na face.
A tranquillidade da mo�a era simulada; apenas a madrinha voltou as costas, cobriu-se-lhe o rosto com o mesmo veu. Ella aprendera desde crean�a a disfar�ar as suas preoccupa��es.
Quanto a Luiz Alves, posto houvesse contado com o seu methodo cru e abrupto, saiu dalli sem plena certeza do resultado. Esta incerteza abalou-o mais do que elle suppunha; e foi, sem duvida, a primeira occasi�o em que sentiu que a amava dev�ras, ainda que o seu amor fosse como elle mesmo: placido e senhor de si. No dia seguinte, Estev�o interrogou-o a respeito de Guiomar.
—Creio, disse elle depois de reflectir alguns instantes,—creio que por ora n�o deves perder as esperan�as todas.
Durante tres dias deixou Luiz Alves de ir � casa da baroneza, estando ali�s a morrer por isso. Entrava por�m no plano esta ausencia; era das instruc��es que elle mesmo dera ao seu cora��o; n�o havia remedio sen�o observal-as.
No quarto dia recebeu um bilhete da baroneza que o comprimentava pela elei��o. A mala do norte cheg�ra, e com ella a noticia da victoria eleitoral. Estava Luiz Alves deputado; ia emfim dar a sua dem�o no fabricos das leis. Estev�o foi o primeiro que o felicitou; era o antigo companheiro dos bancos da academia; tanto ou mais do que os outros devia applaudir aquella boa fortuna. N�o lhe escondeu, entretanto a inveja que ella lhe mettia:
—Deputado! suspirou elle. Oh! eu tambem podia ser deputado.
Estev�o dizia isto, como a crean�a deseja o dixe que v� no collo de outra crean�a,—nada mais. Eram os seus sonhos de outr'ora, que renasciam taes quaes eram, inconsistentes, vagos, prestes a dissiparem-se com o primeiro raio da manh�.
Luiz Alves apressou-se a ir agradecer � baroneza a felicita��o. Guiomar teve um leve estremecimento quando o viu, mas recebeu-o tranquilla e risonha, quasi indifferente. O advogado era habil; n�o a perseguiu com os olhos; sobre accordar a atten��o das demais pessoas, era seguir o methodo commun. Elle n�o queria parecer-se com os outros.
Guiomar, entretanto, observava-o a espa�os, de revez, como a querer sorprehendel-o; a pouco e pouco, por�m, o seu olhar foi sendo mais direito e firme. O de Luiz Alves era natural e egual como antes era, como era ainda agora com todos.
Ao sair, junto � porta de uma sala, onde acaso a topou, Luiz Alves teve occasi�o de lhe dizer esta simples palavra:
—Perdoou-me?
A mo�a retirou a m�o, que elle tinha presa na sua, e furtou o corpo, ao mesmo tempo que lhe caiam as palpebras.
—Perdoou-me? repetiu-elle.
Guiomar retirou-se sem dizer palavra. Luiz Alves esperou que ella desapparecesse e saiu. A mo�a, entretanto, ficou irritada por nada lhe ter respondido, sendo verdade que nada achou nem acharia talvez que lhe responder; mas arrependeu-se e pensou longo tempo naquillo.
Quer dizer que o amava? Quer dizer que estava prestes a isso. A arraiada branqueava o ceu, tingiria depois o cimo dos montes, entornar-se-hia emfim pela encosta abaixo, at� apparecer o sol,—o sol contemporaneo de Ad�o, e do ultimo homem que hade vir.
Dalli a dias, entrando Luiz Alves em casa da baroneza, teve a boa fortuna de encontrar a mo�a sosinha, na sala do trabalho, d'onde a baroneza se ausent�ra cinco minutos antes. Mrs. Oswald achava-se f�ra. Era a hora da tardinha; o dia estava prestes a afogar-se no seio da noite.
Guiomar, mollemente sentada n'uma cadeira baixa, tinha um livro aberto sobre os joelhos e os olhos no ar. Luiz Alves sorprehendeu-a nessa attitude meditativa, mais bella do que nunca, porque assim, e �quella hora, e com o vestido meio escuro que lhe real�ava a c�r de leite da face, tinha um qu� de gracioso e severo, ao mesmo tempo, que parecia buscado de proposito para recebe-lo.
—Minha madrinha j� vem, disse Guiomar logo depois de lhe estender a m�o, que elle apertou e sentiu um pouco tremula.
—Talvez daqui a cinco minutos, disse elle; � bastante para decidir o meu destino. Duas vezes lhe perguntei se me perdoara; pela terceira lhe pe�o que me responda; custa pouco uma unica palavra; custa menos ainda, um unico gesto.
A mo�a olhou algum tempo para o livro que tinha diante de si. A manh�, porem, era j� alta no cora��o de Guiomar, a claridade intensa, o sol quente e vivo, por que ella n�o olhou muito tempo para o livro, nem hesitou mais do que era natural e exigivel naquella occasi�o. Dous minutos depois fez o gesto, um gesto s�, mas ainda mais eloquente do que se ella falasse,—estendeu-lhe a m�o.
Luiz Alves apertou-lh'a entre as suas.
A commo��o era natural em ambos; alli estiveram alguns instantes calados, elle com os olhos fitos nella, ella com os seus no ch�o. As m�os tocavam-se e os cora��es palpitavam unisonos. Decorreram assim cinco breves minutos. Ella foi a primeira que rompeu o silencio.
—Um gesto, um s� gesto, e � o meu destino que lhe entrego com elle, disse Guiomar olhando em cheio para o mo�o.
—Ainda n�o. Se os nossos destinos se ligarem, estou convencido de que o meu amor, pelo menos, ter� a virtude de a tornar feliz. Mas nada est� feito ainda, e se eu fui breve e apressado na confiss�o, n�o o desejo ser na consagra��o que lhe pe�o.
Luiz Alves calara-se; a mo�a olhava para elle como buscando entende-lo.
—Sim, continuou elle; melhor � que n�o ceda a um instante de enthusiasmo. Minha vida � sua; todo o meu destino est� nas suas m�os... Comtudo, n�o quero sorprehender-lhe o cora��o neste momento; no dia em que me julgar verdadeiramente digno de ser seu esposo, ouvi-la-hei e seguila-hei.
A resposta da mo�a foi apertar-lhe as m�os, sorrir, e embeber os seus olhos nos delle. O passo da baroneza interrompeu esta contempla��o.
Guiomar amava deveras. Mas at� que ponto era involuntario aquelle sentimento? Era-o at� o ponto de lhe n�o desbotar � nossa heroina a castidade do cora��o, de lhe n�o diminuirmos a for�a de suas faculdades affectivas. At� ahi s�; dahi por diante entrava a fria elei��o do espirito. Eu n�o a quero dar como uma alma que a paix�o desatina e cega, nem faze-la morrer de um amor silencioso e timido. Nada disso era, nem faria. Sua natureza exigia e amava essas flores do cora��o, mas n�o havia esperar que as fosse colher em sitios agrestes e nus, nem nos ramos do arbusto modesto plantado em frente de janella rustica. Ella queria-as bellas e vi�osas, mas em vaso de S�vres, posto sobre movel raro, entre duas janellas urbanas, flanqueado o dito vaso e as ditas flores pelas cortinas de cachemira, que deviam arrastar as pontas na alcatifa do ch�o.
Podia dar-lhe Luiz Alves este genero de amor? Podia; ella sentiu que podia. As duas ambi��es tinham-se adivinhado, desde que a intimidade as reuniu. O proceder de Luiz Alves, sobrio, directo, resoluto, sem desfallecimentos, nem demasias ociosas, fazia perceber � mo�a que elle nascera para vencer, e que a sua ambi��o tinha verdadeiramente azas, ao mesmo tempo, que as tinha ou parecia tel-as o cora��o. Demais, o primeiro passo do homem publico estava dado; elle ia entrar em cheio na estrada que leva os fortes � gloria. Em torno delle ia fazer-se aquella luz, que era a ambi��o da mo�a, a atmosphera, que ella almejava respirar. Estev�o dera-lhe a vida sentimental,—Jorge a vida vegetativa; em Luiz Alves via ella combinadas as affei��es domesticas com o ruido exterior.
Uma vez entendidos, � difficil que dous cora��es se encubram, pelo menos aos olhos mais sagazes. Os de Mrs. Oswald eram dos mais finos. A ingleza percebeu dentro de pouco tempo que entre elles havia alguma cousa. Interrogar a mo�a era inutil, sobre perigoso; seria ir, de cora��o leve, em busca de odio, talvez. Todavia se ainda fosse possivel salvar tudo? Guiomar resistiria difficilmente a um desejo de madrinha; era poss�vel vencel-a por esse lado.
Mrs. Oswald concebeu ent�o um projecto insensato, que lhe pareceu ali�s excellente e de bom aviso. O desejo de servir a baroneza e levar uma ideia ao fim tapou-lhe os olhos de raz�o. Ella foi directamente a Jorge.
—Sabe o que me est� parecendo? disse ella. Parece-me que ha mouro na costa.
—Mouro na costa! exclamou Jorge com uma tal express�o de desgosto, que era facil comprehender o fundo de suspeita j� existente em seu espirito.
—Nada menos, disse a ingleza; mas um mouro que se p�de capturar.
E a ingleza expoz um plano completo que o sobrinho da baroneza ouviu um tanto perplexo. O plano consistia em ir Jorge pedir a mo�a � baroneza, em presen�a della propria. A baroneza, que nutria o desejo de os ver casados, n�o deixaria de fazer pezar o seu voto na balan�a, e era muito difficil que a gratid�o de Guiomar n�o decidisse am favor de Jorge.
—A gratid�o... e o interesse, continuou ella; Devemos contar tambem com o interesse, que � um grande conselheiro intimo. Ella n�o ha de querer sacrificar a affei��o da madrinha, que para ella vale...
—Oh! que triste lembran�a! interrompeu Jorge, recuando diante da ideia de Mrs. Oswald.
A ingleza sorriu,—e deixou por m�o aquelle argumento; firmou-se por�m no da affei��o. Guiomar n�o se opporia a um desejo da madrinha; era urgente dar-lhe o golpe. Jorge n�o se atrevia a sorprehender por esse meio a acquiescencia da mo�a; mas acreditava na efficacia delle, e sobretudo receiava perder a causa. Uma vez que a vencesse, tudo podia confiar do tempo e do seu amor.
O conselho foi seguido pontualmente. De noite, em presen�a da baroneza � hora da despedida,—porque elle hesitara a maior parte do tempo,—praticou Jorge aquelle acto insensato de declarar � mo�a que a amava e de lhe pedir a m�o. A tia sorriu de contentamento, mas teve a prudencia de n�o proferir nada emquanto Guiomar, empallidecendo, nada dizia, porque nada achava que dizer.
O silencio durou cerca de tres e quatro minutos, um silencio acanhado a vexado, em que nenhum delles se atrevia a reatar a conversa��o. A baroneza, pela sua parte, imaginava que os dous estavam emfim entendidos, e que a declara��o era autorisada pela mo�a. O enleio de Guiomar n�o era dos que podessem dar cabimento a esta supposi��o; mas a boa senhora via com os olhos dos seus bons desejos.
—Pela minha parte, declarou emfim a baroneza, n�o me opponho; estimaria muito que acabassem por ahi. Mas � negocio do cora��o; devo esperar a resposta de Guiomar.
E voltando-sa para a afilhada:
—Pensa e resolve, minha filha, disse ella; e se fores feliz, sel-o-hei ainda mais do que tu.
Duas vezes pairou a negativa nos labios da mo�a; mas a lingua n�o se atrevia a repellir a palavra do cora��o. No fim de alguns instantes:
—Reflectirei, respondeu ella beijando a m�o a madrinha; e continuou voltando-se para Jorge:—Boa noite! At� amanh�.
Na mesma noite em que Jorge, cedendo �s suggest�es de Mrs. Oswald, tentava o ultimo recurso que no intender da ingleza havia, achava-se Luiz Alves em casa, commodamente sentado n'uma poltrona de couro, defronte da janella com os olhos no mar e o pensamento nas suas duas candidaturas vencidas. Meia noite estava a pingar; uma pessoa descia de um tibury e batia-lhe � porta.
Era Estev�o.
Luiz Alves naturalmente admirou-se de o ver alli �quella hora; mas Estev�o explicou-lhe tudo.
—Venho passar meia hora comtigo, ou a noite toda se quizeres. Estava em casa aborrecido, a pensar... bem sabes em que...
—Nella? interrompeu Luiz Alves.
—Agora e sempre.
Luiz Alves torceu o bigode, e olhou tres ou quatro vezes para o collega, em quanto este tirava o chapeu e dispunha-se a ir buscar uma cadeira para sentar-se ao p� do outro.
—Estev�o, disse Luiz Alves depois de algums instantes de reflex�o, e voltando a poltrona para dentro, ouve-me primeiro e resolver�s depois se ficas a noite ou se te v�s embora immediatamente. Talvez escolhas este ultimo alvitre.
—V�s falar-me de Guiomar?
—Justamente.
Estev�o sentou-se defronte de Luiz Alves. Seu cora��o batia appressado; dissera-se que toda a sua vida pendia dos labios do amigo. Houve um instante de silencio.
—Nenhuma.... nenhuma esperan�a ent�o? murmurou Estev�o.
—Disseste a fatal palavra! exclamou Luiz Alves. Sim, n�o tens nenhuma esperan�a.
—Mas.... como sabes?
—N�o me interrogues; eu n�o poderia dizer-te tudo o que ha. Poupa-me, ao menos, esse triste dever.
Estev�o sentiu arrasarem-se-lhe os olhos d'agua. Quiz falar, mas as palavras iam-lhe saindo envoltas em solu�os.
Luiz Alves fumava tranquillamente, acompanhando com os olhos os rolinhos de fumo que lhe fugiam da ponta do charuto. Este silencio durou cerca de dez minutos. O mar batia compassadamente na praia. A voz da onda e o latido de um c�o ao longe eram os unicos sons que vinham quebrar a mudez daquella hora solemne para um desses dous homens que ia perder at� o repouso da esperan�a.
Estev�o foi o primeiro que falou:
—Ama a outro, n�o �? perguntou elle com a voz tremula.
—Ama, respondeu surdamente Luiz Alves.
Estev�o ergueu-se e deu alguns passos na sala, sem dizer palavra, a morder a ponta do bigode, parando �s vezes, outras traduzindo com um gesto desordenado os sentimentos que lhe tumultuavam no cora��o. A dor devia ser grande, mas a manifesta��o j� n�o era a mesma que o leitor lhe viu, dous annos antes, quando elle foi confiar ao amigo o primeiro desengano de Guiomar.
—Parece-me que eu adivinhava isto mesmo, disse elle, emfim, parando em frente de Luiz Alves. Este desejo que me accometteu de vir aqui, a este hora, sem certeza de encontrar-te, era mais um beneficio do meu destino. Devia esperal-o. Que vida tem sido a minha, Luiz! Agarrei-me, nem sei por que, � esperan�a de ser amado por ella, de a vencer pela piedade, ou pelo remorso, ou por qualquer outro motivo que fosse,—o motivo importava pouco... O essencial � que ella me pagasse em ternura e amor todas as dores que curti, as lagrimas todas que tenho devorado em silencio... E era so essa esperan�a que ainda me dava for�as... que me fazia crer feliz, como pode sel-o um desgra�ado, como podia sel-o eu, que nasci debaixo de ruim estrella.... Oh! se tu souberas... N�o, n�o sabes, nem ella tambem, ninguem sabe nem saber� nunca tudo quanto tenho padecido, tudo quanto....
Interrompeu-se. Duas lagrimas, espremidas do fundo do cora��o, saltaram-lhe dos olhos e desceram-lhe rapidas a perder-se entre os cabellos raros e finos da barba. Elle sentiu que outras podiam vir, e foi sentar-se n'um soph�, meio voltado de costas para Luiz Alves. As outras vieram, porque o cora��o ainda as tinha para as d�res supremas; mas correram-lhe silenciosas, sem um solu�o, sem uma queixa unica.
Luiz Alves lavantara-se e chegara � janella. Seu espirito, apezar de frio e quieto, parecia agora um pouco alvoro�ado. N�o era dor; e n�o sei se lhe podia chamar remorso. Mau-estar apenas, e commisera��o. O cora��o era capaz de affei��es; mas, como ficou dito no primeiro capitulo, elle sabia rege-las, modera-las e guia-las ao seu proprio interesse. N�o era corrupto nem perverso; tambem n�o se p�de dizer que fosse dedicado nem cavalheresco; era, ao cabo de tudo, um homem friamente ambicioso.
Estev�o levantara-se outra vez e pegara no chapeu.
—Vem c�, disse Luiz Alves entrando e indo ter com elle; vejo que est�s mais homem do que antes. Resta o que sejas completamente; varre da memoria e do cora��o tudo o que possa referir-se...
—Que remedio! interrompeu Estev�o sorrindo amargamente; que remedio tenho eu se n�o esquece-la! Mas quando?
—Mais breve talvez do que supp�es...
Luiz Alves n�o acabou; Estev�o olhara para elle com um gesto de espanto e fora sentar-se outra vez.
—Mais breve do que supponho! exclamou elle. Tu n�o tens cora��o: n�o tens sequer observa��o nem memoria. N�o v�s, n�o sentes que esta paix�o � o sangue do meu sangue, a vida da minha vida? Esquece-la! Era bom se eu a pudesse esquecer; mas a minha m� sina at� essa esperan�a me arranca, porque este padecer intimo, constante, ha de ir commigo at� � morte...
Desta vez era Luiz Alves que passeava de um lado para outro. Em seu espirito despontava uma ideia, que elle examinava, a ver se a poria alli mesmo em execu��o. Era dizer-lhe tudo. Estev�o viria a sabel-o mais tarde; melhor era que o soubesse logo e por elle. Ao mesmo tempo reflectia na exalta��o dos sentimentos do rapaz; a dor certamente se lhe aggravaria, em sabendo que era elle o preferido de Guiomar. O cora��o, que perdoaria a um extranho, condemnaria ao amigo.
Estev�o, assentado, com os olhos no tecto, parecia entregue �s suas reflex�es, mas s� parecia, por que elle n�o pensava, evocava antigas memorias, fazia surgir diante de seus olhos a figura gentil de Guiomar, sentia-lhe o imperio dos bellos olhos castanhos, ouvia-lhe a palavra doce e avelludada entornar-se-lhe no cora��o. N�o evocava s�, creava tambem, pintava com a imagina��o a felicidade que lhe poderia dar a mo�a, se entre todos os homens o escolhera, se elles dous vinculassem os seus destinos. Elle via-a ao p� de si, cingia-lhe o bra�o em volta da cintura, enchia-lhe de beijos os cabellos, tudo isto em meio de uma paisagem unica na terra, porque a abundancia da natureza cresceria ao contacto daquelle sentimento puro, casto e eterno. N�o falo eu, leitor; transcrevo apenas e fielmente as imagina��es do namorado; fixo nesta folha de papel os v�os que elle abria por esse espa�o f�ra, unica ventura que lhe era permittida.
No meio dessas vis�es foi accordal-o Luiz Alves.
—Tens raz�o de sentir, disse este; mas n�o gastes o cora��o, que ha maiores sorpresas na vida... Em todo o caso, deixa-me dizer-te que nenhuma raz�o tens de censura...
—Censuro eu algu�m?
—Ha no amor um germen de odio que p�de vir a desenvolver-se depois. Talvez chegues a accusala de te n�o querer; nesse dia reflecte que os movimentos do cora��o n�o est�o nas m�os da vontade. Ella n�o tem culpa se outro lhe despertou o amor.
—Ah! incumbiu-te da defesa!
Luiz Alves sorriu; elle contava com a recrimina��o.
—N�o, n�o me incumbiu da defesa, disse elle; sou eu que a tomo por minhas m�os. Que defendo eu aqui se n�o a natureza, a raz�o, a logica dos sentimentos, dura e inflexivel como toda a outra logica? Ha no fundo das tuas palavras um sentimento de egoismo...
—O amor n�o � outra cousa, respondeu Estev�o sorrindo por sua vez. Queres que inda em cima lhe agrade�a este desespero? Queres que v� apertar a m�o ao homem que a soube vencer?
Luiz Alves mordeu a ponta do labio e acercou-se da janella. Quando ia a voltar para dentro ouviu um rumor na janella ao p�, a primeira da casa da baroneza. Luiz Alves deu um passo mais. N�o viu ninguem; viu apenas o resto de um vestido que fugia e um objecto que lhe caia aos p�s. Inclinou-se a apanhal-o. Era uma grande folha de papel envolvendo, para lhe dar mais peso, outra folha pequena dobrada em quarto. Luiz Alves aproximou-se da luz, e leu rapidamente o que alli vinha escripto. Leu, metteu o papel na algibeira e encaminhou-se disfar�adamente para a janella. Ninguem; a casa da baroneza dormia.
Quando voltou para dentro, Estev�o tinha-se levantado. Elle vira cair o papel, apanhal-o e lel-o Luiz Alves. N�o entendeu nada do que se passara; mas seu olhar como que pedia uma explica��o.
Luiz Alves foi direito ao fim.
—Estev�o, disse elle, v�s saber a verdade toda; n�o poderia occultar-te o que se ha passado, nem conviria talvez que tu a soubesses por boca de outro. Guiomar podia amar-te, eras digno della, e ella digna de ti; mas a natureza n�o os fez um para o outro. S�o duas almas excellentes que seriam infelizes unidas. Quem ha aqui que censurar? Mas se a natureza explica o sentimento della, egualmente explica o de um terceiro, que sou eu. Tu confiaste-me as dores e as esperan�as de teu cora��o; era conhecer toda a minha amisade e a profunda estima que sempre te consagrei. Mas nem tu nem eu contavamos commigo; por que tambem eu tenho cora��o, e os prestigios da belleza tambem falam � minha alma. N�o a pude ver a frio. A paix�o obscureceu-me. Nesta minha felicidade de amar e ser amado, acredita que sou alguma cousa infeliz, por que ha lagrimas tuas, ha o teu padecer longo e cruel, que eu imagino e deploro. A confiss�o � franca; n�o te falo em arrependimento, porque s�o actos do cora��o e n�o da consci�ncia, que essa � pura e honrada. E depois desta exposi��o fiel, cuido que lastimar�s commigo o encontro em que o acaso ou a m� sorte nos reuniu a todos tres; mas n�o me accusar�s nem me recusar�s a tua velha estima. Falo s� da estima; a amisade, creio que n�o poder� ser a mesma. Mas presar�s o meu caracter. Pela minha parte, nem uma nem outra cousa perece; sei o que vales. N�o sei aonde nos lan�ar� a onda do destino amanh�. Pela ultima vez, por�m, espero que apertar�s a m�o do teu amigo.
Luiz Alves conclu�ra estendo-lhe a m�o. Estev�o olhou para elle, mas n�o disse uma s� palavra, n�o fez um gesto unico: caminhou para a porta e saiu.
—Estev�o! gritou Luiz Alves.
Mas s� lhe respondeu o rumor dos p�s que desciam, e pouco depois o do tilbury que rolava surdamente na terra humida da praia.
Luiz Alves levantou seccamente os hombros; chegou-se � luz e releu o escripto.
N�o era preciso reler o papel para entendel-o; mas olhos amantes deliciam-se com letras namoradas. O papel continha uma palavra unica:—Pe�a-me,—escripta no centro da folha, com uma lettra fina, elegante, feminina. Luiz Alves olhou algum tempo para o bilhete, primeiramente como namorado, depois como simples observador. A lettra n�o era tremula, mas parecia ter sido lan�ada ao papel em hora de commo��o.
Desta observa��o passou Luiz Alves a uma reflex�o muito natural. Aquelle bilhete, pouco conveniente em quaesquer outras circumstancias, estava justificado pela declara��o que elle proprio fizera � mo�a alguns dias antes, quando lhe pediu que o conhecesse primeiro, e que no dia em que o julgasse digno de o tomar por esposo, elle a ouviria e acompanharia. Mas se isto era assim em rela��o ao bilhete, n�o o era em rela��o � hora. Que motivo obrigaria a mo�a a deitar-lhe da janella, � meia noite, aquelle papel decisivo, eloquente na mesma sobriedade com que o escrev�ra?
Luiz Alves concluiu que havia alguma raz�o urgente, e portanto, que era preciso acudir � situa��o com os meios da situa��o. Quanto � raz�o em si, n�o a p�de descobrir. Occorreu-lhe o facto, ali�s patente, da c�rte que o sobrinho da baroneza fazia a Guiomar, mas ignorava as circumtancias que lhe eram relativas, e n�o p�de passar al�m.
N�o direi que Luiz Alves gastasse a noite a cavar fundo no terreno das conjecturas vagas. N�o era homem que perdesse tempo em cousas inuteis; e nada mais in�til naquella occasi�o do que tentar explicar o que nenhuma explica��o podia ter para elle. O que resolveu foi obedecer ao recado da mo�a; pedi-la sem hesita��o nem preambulo. Mas se o caso lhe n�o produziu insomnia, n�o deixou de lhe estender a vigilia, al�m da hora usual, como era de geito naquella occasi�o solemne, sobretudo, tratando-se de creatura que por aquelles tempos era a inveja e a cobi�a de muitos olhos. Luiz Alves n�o era, como Estev�o, um adoravel scismador, n�o se nutria de imagina��es e devaneios, alimento que funde pouco ou nada, mas scismou algum tempo, embebeu-se uma hora na contempla��o ideial da mulher que elle soubera escolher. O somno chegou, e o devaneio confundiu-se com o sonho.
Guiomar dormiria t�o repousadamente como elle? Dormia; a noite, por�m, fora-lhe muito mais agitada e amarga, como era natural depois da declara��o de Jorge e das insinua��es da madrinha.
A mo�a recolhera-se ao quarto, logo depois da declara��o. As pessoas da casa nada puderam ler-lhe no rosto, salvo a pallidez repentina e o rubor que se lhe seguiu: mas, logo que ella se achou s�, deu toda a expans�o aos sentimentos que at� alli pudera conter.
O primeiro delles era o despeito; Guiomar sentia-se humilhada com aquella declara��o, assim feita, de emboscada e sobresalto, para arrancar-se-lhe um consentimento que o cora��o e a indole repelliam. Nenhuma consulta, nenhuma autorisa��o pr�via; parecia-lhe que a tratavam como ente absolutamente passivo, sem vontade nem elei��o propria, destinado a satisfazer caprichos alheios. As palavras da madrinha desmentiam esta supposi��o; mas, a noticia que ella tinha da resolu��o da baroneza, neste negocio, diminuia muito o valor de taes palavras. Se era uma campanha, como dissera Mrs. Oswald, queriam constrangel-a com apparencias de modera��o, e o tempo que lhe deixavam para reflectir era-o realmente para considerar, sosinha comsigo, na necessidade de pagar os benef�cios que receb�ra.
N�o a accusem de ter feito estas reflex�es, logo que entrou no quarto, com os olhos scintillantes e os labios frios de colera. Eram naturaes; primeiramente porque suppunha que o seu casamento com Jorge estava deliberado e se realisaria, quaesquer que fossem as circumstancias; depois, porque a alma della era melindrosa; n�o esquecia os beneficios recebidos, mas quizera que lh'os n�o lembrassem por meio de uma violencia: fazel-o, era o mesmo que lan�ar-lh'os em rosto.
—N�o! murmurava emfim a mo�a, for�ar-me, reduzir-me � condi��o de simples serva, nunca!
Mas esta colera apaziguou-se, e o cora��o venceu o cora��o. Guiomar recordou a constante ternura da baroneza para com ella, a sollicitude com que lhe satisfazia os seus menores desejos, que eram alli ordens, e n�o combinava tamanho amor com a supposta violencia que lhe queria fazer. N�o tardou em arrepender-se das palavras incoherentes que lhe haviam fugido, e dos sentimentos maus que attribu�ra ao cora��o da baroneza. Cruzou as m�os no peito e ergueu o pensamento ao ceu, como a pedir-lhe perd�o. Guiomar, em meio das seduc��es da vida, que tantas eram para ella e de todo lhe levavam os olhos, n�o perdera o sentimento religioso, nem esquecera o que lhe havia ensinado a f� ingenua e pura de sua m�e.
A c�lera acab�ra, mas veiu depois a luta entre a gratid�o e o amor,—entre o noivo que lhe propunha a affei��o da madrinha e o que o seu proprio cora��o escolhera. Ella nem ousava tirar as esperan�as � baroneza, nem immolar as suas proprias,—e uma de duas cousas era preciso que fizesse naquella solemne occasi�o. O que sentiu e pensou foi longo e cruel; mas se tal duello podia travar-se-lhe na alma, n�o era duvidoso o resultado. O resultado devia ser um. A vontade e a ambi��o, quando verdadeiramente dominam, podem lutar com outros sentimentos, mas h�o de sempre vencer, porque ellas s�o as armas do forte, e a victoria � dos fortes. Guiomar tinha de decidir por um dos dous homens que lhe propunha o seu destino; elegeu o que lhe falava ao cora��o.
A resposta, por�m, n�o podia a mo�a demoral-a nem esquival-a, n�o convinha, talvez, prolongar a luta e a duvida. Quando isto pensou, veiu-lhe ao espirito uma ideia decisiva, a de confessar tudo � madrinha. Hesitou, por�m, entre fazel-o ella propria ou por boca de Luiz Alves, cujas palavras, apontadas acima trazia escriptas na memoria. Preferia este meio; mas n�o lhe bastava preferil-o, era mister realisal-o, e para isso s� dous modos tinha, escrever-lhe ou falar-lhe. O segundo podia n�o ser t�o prompto, e talvez falhasse occasi�o apropriada; adoptou o primeiro, e recuou logo. A carta seria mandada por um famulo, mas o espirito de Guiomar era a tal ponto sobre si que repelliu semelhante interven��o. A janella estava aberta; dalli viu luz na sala de Luiz Alves e a sombra do mo�o, que passeava de um lado para outro. Occorreu-lhe ent�o a ideia que poz por obra, conforme ficou dito no capitulo anterior.
Tal � a historia daquella palavra escripta rapidamente n'uma folha de papel. Apesar da declara��o de Luiz Alves e das circumstancias em que a mo�a se achou, o leitor facilmente comprehender� que ella n�o a escreveu sem pelejar comsigo mesma, sem vacillar muito entre a repugnancia e a necessidade. Afinal foram vencidos os escropulos, que � tanta vez o seu destino delles, e for�a � dizer que n�o os vencem nunca de gra�a, porque elles falam, arrazoam, obstam o mais que podem, mas � vulgar passarem-lhes por cima. A mo�a entretanto, apenas lan�ara a carta, arrependeu-se; a dignidade teve remorsos; a consci�ncia quasi a accusava de uma ac��o vil. Era tarde; a carta cheg�ra a seu destino.
Na manh� seguinte, a baroneza acordou mais alegre que de costume. Cuidara ver em Guiomar, na noite anterior, alguma cousa que s� lhe pareceu enleio natural da situa��o. Guiomar erguera-se tarde; a manh� estava chuvosa e a madrinha n�o deu o seu passeio. A mo�a foi beijar-lhe a m�o e a face, como costumava, e receber della o osculo materno. O rosto parecia can�ado mas um veu de affectada alegria disfar�ava-lhe a express�o natural, � semelhan�a das posturas de toucador, de maneira que a baroneza, pouco ledora de physionomias, n�o discerniu naquella a verdade da impostura. Impostura, digo eu, devendo entender-se que � honesta e recta, porque a inten��o da mo�a n�o era mais do que n�o amargurar a madrinha, e tirar-lhe motivo a qualquer afflic��o antecipada.
—Dormiu bem a minha rainha de Inglaterra? perguntou Mrs. Oswald, pondo-lhe familiarmente as m�os nos hombros.
—A sua rainha de Inglaterra n�o tem coroa, respondeu Guiomar comum sorriso contrafeito.
Pela volta do meio dia, recebeu a baroneza uma carta de Luiz Alves. Abriu-a e leu-a. O advogado pedia-lhe a m�o de Guiomar. Poucas linhas, cortezes, simplices, naturaes, feitas por quem parecia senhor da situa��o.
—Mrs. Oswald, disse a baroneza � sua dama de companhia que se achava na mesma sala, leia isto.
A ingleza obedeceu.
—Isto n�o quer dizer nada, observou ella depois de alguns instantes. � um pretendente mais; devemos crer, por�m, que s�o muitos, e que se os outros n�o lhe escrevem cartas destas, � por que s�o menos affoutos. A Sra. baroneza pensa que os olhos de sua afilhada s�o innocentes? continuou a ingleza sorrindo. Eu cuido que devem estar carregados de crimes, e que ha mortos...
—Mas n�o v�, Mrs. Oswald, interrompeu a baroneza, que esse homem parece estar autorisado?
Mrs. Oswald calou-se como quem reflectia. Logo depois expoz uma serie de argumentos e considera��es, se n�o graves em substancia, pelo menos nas roupas com que ella os vestia, umas roupas seriamente britannicas, como as n�o talharia melhor a melhor tesoura da camara dos communs. Toda ella dava ares de um argumento vivo e sem r�plica. Havia em seus cabellos, entre louro e branco, toda a rigidez de um syllogismo; cada narina parecia uma ponta de um dilemma. A conclus�o de tudo � que nada estava perdido, e que a felicidade de Jorge era cousa n�o s� possivel, mas at� provavel, uma vez que a baroneza mostrasse,—era o essencial,—certa resolu��o de animo muito util e at� indispensavel naquella occasi�o. Mrs. Oswald offerecia-se para ir chamar a mo�a immediatamente.
—Pois v�, v�, disse a baroneza.
A ingleza saiu d'alli e foi ter com Guiomar. Quando a viu de longe compoz um sorriso, e Guiomar, vendo-a sorrir, sentiu como que um movimento interno de repulsa.
—Venho buscal-a, disse Mrs. Oswald, para uma cousa que a senhora est� longe de imaginar.
Guiomar interrogou-a com olhos.
—Para casar!
—Casar! exclamou Guiomar sem comprehender a inten��o da mensageira.
—Nada menos, respondeu esta. Admira-se, n�o? Tambem eu; e sua madrinha egualmente. Mas ha quem tenha o mau gosto de apaixonar-se por seus bellos olhos, e a affronta de a vir pedir, como se se podissem as estrellas do ceu...
Guiomar comprehendeu de que se tratava. Olhou desdenhosamente para a ingleza, e disse em tom secco e breve:
—Mas, conclua, Mrs. Oswald.
—A senhora baroneza manda chamal-a.
Guiomar dispoz-se a ir ter com a madrinha; Mrs. Oswald fel-a parar um instante, e com a mais meliflua voz que possuia na escala da garganta, disse:
—Toda a felicidade desta casa est� em suas m�os.
Mrs. Oswald tinha falado de mais. A baroneza n�o a incumbira de dizer � afilhada a raz�o porque a mandava chamar. Aconteceu, por�m, que aquella indis�ri��o n�o foi a unica. Mrs. Oswald, em vez de esquivar-se e deixar que entre Guiomar e a baroneza fosse tratado o assumpto que as ia reunir, cedeu � curiosidade, e acompanhou a mo�a.
A baroneza estava sentada, entre duas janellas, com a carta aberta nas m�os, t�o attenta em relel-a, que n�o ouviu o rumor dos p�s de Guiomar e de Mrs. Oswald.
—Madrinha chamou-me? perguntou Guiomar parando em frente della.
A baroneza ergueu a cabe�a.
—Ah! � verdade; sim; chamei-te. Senta-te aqui.
Guiomar arrastou a cadeira que ficava mais proxima e sentou-se ao p� da baroneza. Esta, entretanto, havia dobrado lentamente a carta, e tinha os olhos no ch�o, como a procurar por onde come�aria. Quando os levantou deu com a ingleza. Ia j� a falar, mas estacou. A affei��o que lhe tinha n�o impediu que achasse demasiada familiaridade a presen�a de Mrs. Oswald em semelhante occasi�o. Esperou alguns instantes; mas como a ingleza parecesse inteiramente distrahida:
—Mrs. Oswald, disse a baroneza, v� ver se ja deram de comer aos passarinhos.
A ingleza percebeu que estes passarinhos, naquelle caso, eram uma pura metaphora, e que a baroneza nada mais fazia do que pedir-lhe delicadamente que se f�sse embora. Todavia, n�o se deu por achada.
—Parece-me que n�o, disse ella; vou j� saber disso.
—Olhe, disse a baroneza quando ella j� ia a meio caminho; encoste-me essas portas, e d� ordem para que ninguem nos interrompa.
A ingleza obedeceu e saiu. A careta que fez ao sair ninguem lh'a p�de ver, e n�o se perdeu nada.
As duas ficaram s�s.
—Senta-te aqui, Guiomar, disse a baroneza indicando um banquinho que lhe ficava aos p�s.
Guiomar deixou a cadeira e foi sentar-se no banquinho, pousando amorosamente os bra�os nos joelhos da madrinha. Esta cingiu-lhe a cabe�a com as m�os, e assim esteve longo tempo sem falar, mas eloquente naquella mudez, em que a palavra pertencia ao cora��o. Ambas estavam commovidas; e Guiomar, de envolta com um suspiro, murmurou este unico e doce nome:
—Mam�e!
Era a primeira vez que ella lhe dava este nome, e t�o fundo lhe calou na alma � baroneza que a resposta foi cobril-a de beijos.
—Sim, tua m�e, disse a madrinha; a que te deu o ser n�o te amaria mais do que eu. Tens a alma e a ternura da filha que o ceu me levou, e se todas as m�es que perdem filhos podessem substituil-os do mesmo modo, desapparecia do mundo a maior e mais cruel dor que ha nelle...
A resposta de Guiomar foi apertar-lhe as m�os e beijar lh'as. Seguiu-se uma pausa, em que a commo��o a pouco e pouco desappareceu, e a baroneza olhou para a carta de Luiz Alves, amarrotada pelo gesto de Guiomar.
—Guiomar, disse ella emfim, j� reflectiste no pedido de hontem � noite?
A mo�a esperava que a madrinha lhe falasse no pedido de Luiz Alves; a pergunta da baroneza desnorteou-a um pouco. Sua intelligencia, por�m, era clara e sagaz; a resposta foi outra pergunta:
—Uma noite ser� bastante para decidir de todo o resto da vida? disse ella sorrindo.
—Tens raz�o, minha filha; mas a pergunta era natural da parte de quem quer ver realizado um desejo. Jorge pediu-te em casamento. Sabes que � um excellente caracter?
—Excellente, respondeu a mo�a.
—Uma boa alma, continuou a baroneza, e um mo�o distincto. Parece gostar muito de ti, segundo disse hontem, n�o? � natural; s� me admira que n�o te amem muitos mais.
A baroneza parou; Guiomar brincava com as franjas da manga sem se atrever a levantar os olhos.
—Deves saber, continuou a baroneza,—que eu estimaria ver que este casamento se effectuasse; estou convencida de que te faria feliz, e a elle tamb�m, pelo menos tanto quanto � possivel julgar das cousas presentes... Que diz o teu cora��o?
E como Guiomar n�o respondesse logo:
—Ah! esquecia-me do que me disseste ha pouco. Uma noite n�o � bastante para decidir de todo o resto da vida. Bem; ouvir-me-has mais duas cousas. A primeira � que... L� tu mesma esta carta.
A baroneza deu a carta a Guiomar, que a abriu e leu o pedido que Luiz Alves fazia de sua m�o. Em quanto ella percorria com os olhos as poucas linhas escriptas, a madrinha parecia observa-la fixamente, como a tentar ler-lhe no rosto a impress�o que o pedido lhe fazia, se espanto, se satisfa��o. N�o houve espanto nem satisfa��o apparente; Guiomar leu a carta e entregou-a � madrinha.
—Leste? � a primeira cousa que eu queria dizer-te. O Dr. Luiz Alves pede-te em casamento; tens de escolher entre elle e Jorge. A segunda cousa � que dos dous pretendentes Jorge � o que meu cora��o prefere; mas n�o sou eu que me caso, �s tu; escolhe com plena liberdade aquelle que te falar ao cora��o.
Guiomar erigiu o busto e olhou direitamente para a madrinha, com taes signaes de espanto no rosto, que esta n�o poude deixar de lhe perguntar:
—Que tens?
A mo�a n�o respondeu; quero dizer n�o lhe respondeu com os labios; travou-lhe da m�o e apertou-a entre as suas, e ficou a olhar para ella como a reflectir. A express�o de seu rosto passara do espanto � satisfa��o e desta a uma cousa que parecia a um tempo indigna��o e asco.
—Oh! madrinha! exclamou Guiomar, porque se n�o entenderam logo os nossos cora��es? N�o havia mister p�r de permeio um espirito importuno e desconsolador. Se eu advinhara essas palavras que acabou de dizer, n�o teria padecido metade do que me fazem padecer ha longos dias...
—Padecer?
—Padecer; nada menos. Mas deixemos isso. Foi o seu cora��o que falou e o meu que ouviu; posso agora dizer-lhe francamente o que sinto, sem receio de a affligir.
N�o precisava dizer mais nada; a escolha que ella ia fazer estava j� indicada pelo menos. Entendeu-o a baroneza, que fechou o rosto e suspirou. A afilhada ouviu-lhe o suspiro, e percebeu a tristeza subita; arrependeu-se de ter ido t�o longe.
—Percebo, respondeu a baroneza, queres dizer que dos dous pretendentes escolhes o Dr. Luiz Alves?
A mo�a conservou-se calada; a madrinha olhava para ella com uma express�o de anciedade que a affligiu.
—Fala, repetiu a baroneza.
—Escolho... o Sr. Jorge, suspirou Guiomar depois de alguns instantes.
A baroneza estremeceu.
—Falas serio? N�o creio; n�o � esse o sentimento do teu cora��o. V�-se que n�o �. Queres illudir-me e a ti tamb�m. Percebo que o n�o amas; n�o o amaste nunca. Mas amas ao outro, n�o �? Que tem isso? N�o me d� o prazer que eu teria se... Que importa, se fores feliz? A tua felicidade est� acima das minhas preferencias. Era um sonho meu; desejava-o com todas as for�as; faria o que pudesse para alcan�al-o; mas n�o se violenta o cora��o,—um cora��o, sobretudo, como o teu! Escolhes o outro? Pois casar�s com elle.
V� o leitor que a palavra esperada, a palavra que a mo�a sentia vir-lhe do cora��o aos labios e querer rompel-os, n�o foi ella quem a proferiu, foi a madrinha; e se leu attento o que precede ver� que era isso mesmo o que ella desejava. Mas porque o nome de Jorge lhe ro�ou os l�bios? A mo�a n�o queria illudir a baroneza, mas traduzir-lhe infielmente a voz de seu cora��o, para que a madrinha conferisse, por si mesma, a traduc��o com o original. Havia nisto um pouco de meio indirecto, de tactica, de affecta��o, estou quasi a dizer de hipocrisia, se n�o tomassem � m� parte o vocabulo. Havia, mas isto mesmo lhes dir� que esta Guiomar, sem perder as excellencias de seu cora��o, era do barro commum de que Deus fez a nossa pouco sincera humanidade; e lhes dir� tambem que, apezar de seus verdes annos, ella comprehendia j� que as apparencias de um sacrificio valem mais, muita vez, do que o proprio sacrificio.
A baroneza acab�ra de falar. A alegria do rosto de Guiomar confirmou a sua primeira impress�o, e se a escolha era contraria ao que ella desejava, a satisfa��o da afilhada pagou-lhe tudo quanto ella ira perder. Era assim aquella alma de m�e; boa, dedicada e generosa.
—Oh! madrinha! obrigada! exclamou a mo�a. N�o me fica odiando?
—Oh! exclamou a baroneza com um tom de reprehens�o.
E puxou-a para si, e abra�ou-a com amor. Guiomar correspondeu ao movimento, e as duas confundiram as suas alegrias intimas e affei��es sinceras.
Mrs. Oswald viu-as dahi a pouco, risonhas e entendidas. Era facil concluir qual dos dous pretendentes vencera; Guiomar n�o receberia de t�o boa cara o sobrinho da baroneza. Tudo estava acabado; e talvez que a sua propria pessoa padec�ra naquelle lance ultimo. A baroneza pedira a Guiomar que lhe explicasse a que padecimentos allud�ra, mas a mo�a preferiu n�o dizer nada, n�o s� por n�o affligir a madrinha, como por n�o dar um aspecto de rivalidade � situa��o entre ella e Mrs. Oswald.
A escolha estava feita, o consentimento dado. A baroneza respondeu nessa mesma tarde ao pretendente feliz. Estev�o teria manifestado ruidosamente toda a alegria que semelhante resposta lhe caus�ra; sua alma apaixonada e exuberante contaria a Deus e aos homens aquella immensa fortuna; Luiz Alves encerrou o prazer, ali�s grande, dentro de si; pensou na mo�a e no futuro alguns instantes, mas n�o falou delles a ningu�m.
A baroneza escreveu nesse mesmo dia ao sobrinho, communicando-lhe a resposta de Guiomar. Os leitores n�o ter�o difficuldade de admittir que o cora��o de Jorge n�o sentiu o golpe profundamente, mas sentiu alguma cousa. N�o foi nessa noite � casa da tia; n�o foi tembem na segunda; na terceira chegou a descer as escadas; na quarta embicou para Botafogo.
—Tudo est� acabado, disse-lhe a tia verdadeiramente sentida.
—Acabado! suspirou Jorge.
—Agora, � preciso animo; espero que ser�s homem.
—Oh! serei homem! suspirou outra vez Jorge.
E dous suspiros, arrancados do peito de um homem t�o grave, deviam ser por for�a dous suspiros gravissimos, como facilmente acredita o leitor.
Effectivamente a physionomia do mo�o n�o tinha abatimento nem afflic��o; n�o a amarrotava o menor vestigio de noite mal dormida, menos ainda de lagrimas enxutas. Alegre n�o era, mas grave e austera, como elle a trazia sempre, a contrastar com o retezado do bigode.
A baroneza imaginou comtudo que a dor do sobrinho devia te-lo mortificado muito; apertou-lhe as m�os com ternura e disse-lhe ainda algumas palavras de anima��o.
Imagine-se o que seria o primeiro encontro de Jorge com Guiomar. A mo�a estava serena, talvez risonha e at� compassiva. Se tivesse de casar com elle odiara-o de certo; agora j� lhe perdoava o amor. Jorge pela sua parte n�o deixou de ficar um tanto abalado, em parte commo��o, em parte constrangimento, sendo por�m o constrangimento maior do que a commo��o. Nos labios pairou-lhe um desses sorrisos em que o olhar penetrante do povo ou a sua imagina��o pintoresca descobriu a c�r amarella. Se outro fosse o aspecto, � provavel que ella lhe conservasse, ao menos, o respeito. Mas aquelle sorriso perdeu-o de todo no animo de Guiomar.
Na primeira occasi�o que se lhe offereceu, expandiu-se Jorge com Mrs. Oswald.
—Perdeu-se tudo... murmurou elle.
A ingleza n�o respondeu.
Jorge continuou ainda a falar, e a ingleza e ouvir, mas a ouvir s�, e a querer divertil-o daquelle assumpto.
—Tudo se perdeu, disse emfim o sobrinho da baroneza, talvez por culpa sua.
—Minha? perguntou Mrs. Oswald.
—Sua.
—Mas...
Jorge hesitou um instante.
—N�o mostrou calor sufficiente, disse elle emfim.
—Que quer? disse Mrs. Oswald. O cora��o n�o se pode dominar, nem ha meio de impor-lhe um sentimento. D. Guiomar � uma santa creatura, ama dev�ras ao seu rival; ha nada mais justo do que casa-los?
—De maneira que...
—De maneira que tudo era licito fazer na supposi��o de que ella n�o amava a outro, mas uma vez que ama...
Luiz Alves, na noite do dia em que recebeu a carta, foi � casa da baroneza, que o recebeu com o melhor de seus sorrisos. A felicidade de Guiomar fazia-a completamente feliz; nem iras, nem resentimentos, como annunciara Mrs. Oswald. Todo o castello de cartas ca�ra por terra, desde que a sinceridade da baroneza interveiu.
Marcado o casamento para dous mezes depois, todo o tempo de intervallo foi despendido pelos noivos naquelle deleitoso viver, que j� n�o � o colloquio furtivo do simples namoro, nem � ainda a intimidade conjugal, mas um estado intermedio e consentido, em que os cora��es podem entornar-se livremente um no outro. Aquelles n�o tinham nada do amor extatico e romanesco de Estev�o, mas amavam sinceramente, ella ainda mais do que elle, e t�o feliz um como outro.
A gente que os conhecia commentou de todos os modos e feitios aquelle caso inesperado, e a mais de um roeu a inveja do favor com que o ceu trat�ra a Luiz Alves. A gentileza e a elegancia da mo�a n�o encontravam objec��o no espirito de ninguem; todos as confessavam e applaudiam, porque at� o silencio mortificado de algumas bellezas rivaes, se porventura as havia,—era tambem applauso e do melhor. Quanto ao caracter de Guiomar, divergiam muito as aprecia��es; e um dia, em que Luiz Alves lhe contava uns trechos de conversa ouvidos a furto, e de que era objecto a noiva, ella pareceu reflectir longo tempo, e emfim respondeu:
—N�o admira que haja tanta opini�o differente; � natural, porque nunca vulgarisei o meu espirito. Entretanto, a opini�o dos outros importa-me pouco; eu quizera saber a sua.
—A minha � que � um anjo.
Guiomar fez um gesto gracioso de enfado, como quem n�o esperava aquelle comprimento velho e commum, ali�s eternamente, novo,—porque n�o ha outro mais prompto e mais bello nas nossas linguas christ�s. O noivo sorriu, mas nada lhe disse, e todavia podia dizer-lhe alguma cousa,—aquillo, pelo menos, que o leitor lhe ouviu n'um dos capitulos anteriores.
—Se n�o sabe o que sou,—continuou Guiomar,—eu mesmo o direi, para que se n�o case commigo assim de emboscada, e n�o lhe aconte�a unir-se a um demonio, suppondo que � um anjo...
—Um demonio! exclamou Luiz Alves rindo.
—Nem mais nem menos, retrucou ella rindo tambem. Saiba pois que sou muito senhora da minha vontade, mas pouco amiga de a exprimir; quero que me adivinhem e obede�am; sou tambem um pouco altiva, �s vezes caprichosa, e por cima de tudo isto tenho um cora��o exigente. Veja se � poss�vel encontrar tanto defeito junto.
Luiz Alves respondeu que eram tudo qualidades excellentes, e esteve quasi a dizer que lhe faltava mencionar ainda outra, que era a fundamental de todas; preferiu alludir a ella depois do casamento.
O casamento effectuou-se, no dia marcado, com as solemnidades do estylo. A manh� daquelle dia trajava um manto de neblina cerrada, que o nosso inverno lhe poz aos hombros, como para resguardal-a do rigor benigno da temperatura, manto que ella sacudiu dalli a nada, afim de se mostrar qual era, uma deliciosa e fresca manh� fluminense. N�o tardou que o sol batesse de chapa nas aguas tranquillas e azues, e nessas collinas onde o verde natural ia alternado com a alvura das habita��es humanas. Vento nenhum; apenas uma aragem, branda e fresca, que parecia o ultimo respirar da noite j� remota, e que s� a trechos agitava as folhas do arvoredo.
A chacara naquelle dia era a mesma que nos outros, mas Guiomar achou-lhe um aspecto novo e melhor, uma como expans�o divina que animava as cousas em redor della. Toda a alma feliz � pantheista; parece-lhe que Deus lhe sorri de dentro da flor que desabrocha, do fundo da agua que serpeia murmurando, e at� de envolta com o cip� humilde e rustico, ou no seixo bronco e despresado do ch�o. Era assim a alma de Guiomar naquella manh�. Nunca as arvores, as flores, a gramma rasteira lhe pareceram mais vecejantes; o sentimento interno hauria aquella vida exterior, do mesmo modo que o pulm�o bebia o puro ar matinal.
De envolta com essas sensa��es communs a toda a alma, havia ainda as que eram della,—della, que via alli o seu ultimo sol de mo�a solteira e contemplava por antecipa��o a aurora nova, o dia longo e feliz de suas f�rvidas ambi��es. Neste ponto despia a sua fantazia as azas de folha agreste, com que andara a pairar no meio daquella vegeta��o, para envergar outras de seda e brocado, e voar sabe Deus a que sitios de grandeza humana.
O acaso quiz que naquella manh� vestisse o mesmo roup�o com que Estev�o a vira do outro lado da cerca, e trouxesse no collo e nos pulsos o mesmo broche e os mesmos bot�es de saphira. N�o tinha o livro; mas, em falta desta circumstancia, havia outra, que era a mesma daquella celebre manh�, havia uns olhos que do outro lado do cerca a espreitavam namorados. N�o eram, por�m, os mesmos; eram os do noiva, com quem ella foi encontrar o seus;—e o mais doloroso de tudo � que nem a cerca, nem os demais accessorios, nada lhe lembrou o outro homem que morria por ella. A felicidade � isto mesmo; raro lhe sobra memoria para as dores alheias.
N�o menos alegre do que ella parecia a baroneza naquelle dia. De longe em longe surgia-lhe na memoria a ideia do sobrinho, mas j� n�o havia tristeza de n�o ter effectuado o casamento, como desej�ra; t�o leve foi o golpe em Jorge e t�o indifferente andava elle, que a boa senhora comprehendeu que o amor, se existira, n�o era grande, e sobretudo n�o perdurou; a ideia de que isto mesmo podia acontecer-lhe ao cabo de seis semanas de casado, fel-a dar gra�as a Deus do nenhum exito de seus planos.
Mrs. Oswald egualmente se mostrava feliz,—talvez ainda mais, porque era-o apparatosamente, como se quizesse resgatar as passadas culpas. Guiomar entendia a inten��o latente das manifesta��es ruidosas com que ella andava a felicital-a e bajula-la; mas o dia n�o era de rancores nem de resentimentos, e ella recebia sorrindo as cortezanices da ingleza.
O casamento fez-se, emfim. As lagrimas que a baroneza derramou, quando viu Guiomar ligada para sempre, foram as mais bellas joias que lhe podia dar. Nenhuma m�e as verteu mais sinceras; e, seja dito em honra de Guiomar, nenhuma filha as recebeu mais dentro do cora��o.
Na noite do casamento, quem olhasse para o lado do mar, veria pouco distante dos grupos de curiosos, attrahidos pela festa de uma casa grande e rica, um vulto de homem sentado sobre uma lagea que acaso top�ra alli. Quem est� affeito a ler romances, e leu esta narrativa desde o come�o, supp�e logo que esse homem podia ser Estev�o. Era elle. Talvez o leitor, em lance identico, fosse refugiar-se em s�tio t�o remoto, que mal podesse acompanhal-o a lembran�a do passado. A alma de Estev�o sentiu uma necessidade cruel e singular, o gosto de revolver o ferro na ferida, uma cousa a que chamaremos—voluptuosidade da dor, em falta de melhor donomina��o. E foi para alli, contemplar com os indifferentes e ociosos aquella casa onde reinava o goso e a vida, e naquella hora que lhe afundava o passado e o futuro de que vivera. N�o o retinha a constancia do stoico; pela face emmagrecida e pallida lhe corriam as lagrimas derradeiras, e o cora��o, colhendo as for�as que lhe restavam, batia-lhe forte na arca do peito.
Defronte delle refulgia de todas as suas luzes a mans�o afortunada; detraz batia a onda lenta e melancolica, e via-se o fundo da enseada, escuro e triste. Esta disposi��o do logar servia ao plano que elle concebera, e era nada menos do que matar-se alli mesmo, quando j� n�o pudesse soffrer a dor, especie de vingan�a ultima que queria tomar dos que o faziam padecer tanto, complicando-lhes a felicidade com um remorso.
Mas este plano n�o podia realisar-se, pela raz�o de que era mais um devaneio, que se lhe dissipou como os outros. A frouxid�o do animo negou-lhe essa ultima ambi��o. Os olhos podiam fitar a morte, como podiam encarar a fortuna; mas faltavam-lhe os meios de caminhar a ella. Esteve alli, pois, at� o fim; e em vez de mergulhar na agua e no nada, como deline�ra, regressou tristemente para casa, tropego como um ebrio, deixando alli a sua mocidade toda, porque a que levava era uma cousa descolorida e s�cca, esteril e morta. Os annos passaram depois, e � medida que vinham, ia-se Estev�o afundando no mar vasto e escuro da multid�o anonyma. O nome, que n�o passara da lembran�a dos amigos, ahi mesmo morreu, quando a fortuna o distanceou delles. Se elle ainda vegeta em algum recanto da capital, ou se acabou em alguma villa do interior, ignora-se.
O destino n�o devia mentir nem mentiu � ambi��o de Luiz Alves. Guiomar acertara; era aquelle o homem forte. Um mez depois de casados, como elles estivessem a conversar do que conversam os recem-casados, que � de si mesmos, e a relembrar a curta campanha do namoro, Guiomar confessou ao marido que naquella occasi�o lhe conhecera todo o poder da sua vontade.
--Vi que voc� era homem resoluto, disse a mo�a a Luiz Alves, que, assentado, a escutava.
—Resoluto e ambicioso, ampliou Luiz Alves sorrindo; voc� deve ter percebido que sou uma e outra cousa.
—A ambi��o n�o � defeito.
—Pelo contrario, � virtude; eu sinto que a tenho, e que hei de faze-la vingar. N�o me fio s� na mocidade e na for�a moral; fio-me tambem em voc�, que ha de ser para mim uma for�a nova.
—Oh! sim! exclamou Guiomar.
E com um modo gracioso continuou:
—Mas que me d� voc� em paga? um logar na camara? uma pasta de ministro?
—O lustre do meu nome, respondeu elle.
Guiomar, que estava de p� defronte delle, com as m�os prezas nas suas, deixou-se cair lentamente sobre os joelhos do marido, e as duas ambi��es trocaram o osculo fraternal. Ajustavam-se ambas, como se aquella luva tivesse sido feita para aquella m�o.
INDICE
Advert�ncia de 1907
Advert�ncia de 1874
I. | — | O fim da carta | |
II. | — | Um roup�o | |
III. | — | Ao p� da cerca | |
IV. | — | Latet anguis | |
V. | — | Meninice | |
VI. | — | post-scriptum | |
VII. | — | Um rival | |
VIII. | — | Golpe | |
IX. | — | Conspira��o | |
X. | — | A revela��o | |
XI. | — | Luiz Alves | |
XII. | — | A viagem | |
XIII. | — | Explica��es | |
XIV. | — | Ex-abrupto | |
XV. | — | Embargos de terceiro | |
XVI. | — | A confiss�o | |
XVII. | — | A carta | |
XVIII. | — | A escolha | |
XIX. | — | Conclus�o |
End of the Project Gutenberg EBook of A Mao e A Luva, by Machado de Assis *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MAO E A LUVA *** ***** This file should be named 53101-h.htm or 53101-h.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/5/3/1/0/53101/ Produced by Laura Natal Rodriguez and Marc D'Hooghe at Free Literature (online soon in an extended version, also linking to free sources for education worldwide ... MOOC's, educational materials,...) Images generously made available by the Bodleian Library, Oxford. Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is in Fairbanks, Alaska, with the mailing address: PO Box 750175, Fairbanks, AK 99775, but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at www.gutenberg.org/contact For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.